segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Last Kiss...


Abri os olhos pela segunda vez após a tentativa frustrada de suicídio. Infelizmente não foi Lynn que vi a minha frente, como antes, mas a enfermeira de plantão. Susan, se não me engano... Provavelmente eu teria achado que seus cabelos loiros ondulados, aliados aos carnudos e vermelhos lábios formem um conjunto bastante atraente, provavelmente se esta fosse uma realidade alternativa onde eu não fosse completamente apaixonado por Lynn.
Ao lado da enfermeira Susan, em cima de uma cômoda, três exemplares do meu livro recém lançado. "As crônicas de Haziel. - volume I. - A queda do anjo".

_ Desapontado? – a enfermeira perguntou.

Respondi fazendo cara de quem não entendeu a piada.

_ Desapontado porque esperava que fosse a Lynn? Bom, ela foi pra casa hoje cedo, pediu-me que tomasse conta de você. Eu disse que seria um prazer e ela respondeu que não era para tanto... Ela é muito engraçada e linda, eu também cuidei dela quando estave aqui... Não faz idéia do trabalho que o doutor Willians teve para convencê-la a deixar você e ir para casa descansar um pouco. Ah, eu já ia me esquecendo... – virou-se e apanhou os livros.


_ Pode autografá-los para mim, por favor? Todo mundo que conheço pirou quando eu disse que você era paciente na minha ala do hospital.


Não entendi absolutamente nada após ela deixar de falar sobre Lynn. Como assim pessoas piraram por minha causa? O livro mal foi lançado. Não houve sequer uma festa de lançamento, ao menos não uma com a minha presença, tendo em vista que estava em
coma. Enfim, dei os autógrafos que ela pediu. Assinando apenas Gibreel...

_ Pode por Gibreel, o Arcanjo? – eu a encarei por um momento. Ela sorriu como uma menina prestes a ganhar sua boneca favorita. E então fiz, dei meus primeiros autógrafos como escritor.

A porta se abriu e Willians entrou no quarto trazendo consigo umas folhas de jornal.

A enfermeira se levantou, pegou os livros já autografados, agradeceu-me com um sorriso, cumprimentou Will e saiu porta a fora, parecia feliz como se tivesse acabado de encontrar com o seu maior ídolo.

_ Bom dia, astro sensação do momento. – falou Will e sentou-se na poltrona onde antes estava a enfermeira.

_ Pode, por favor, me explicar o quê esta acontecendo?– perguntei. Willians sorria misteriosamente.

_ Vou ler a primeira página do jornal de hoje e você vai entender...

"Gibreel, conhecido como Arcanjo, autor de as crônicas de Haziel, agora já não é mais uma celebridade nacional. Seu livro é sucesso em boa parte do mundo. Enquanto isso ele continua internado no hospital St. Louis em Londres, depois de ter atentado contra sua própria vida usando uma dose letal de heroína. Mas, contudo, a intenção de Gibreel com isso era nada mais, nada menos que doar seu próprio coração para Lynn Austen, a mulher que ele sempre amou, mãe de sua filha de três anos e que, no entanto, é casada com outro homem...

…o escritor Gibreel nos dá uma lição muito maior do que a qualquer obra de ficção poderia dar. Mostra-nos que na vida real ainda há espaço para o verdadeiro e altruísta sentimento. E, assim como o seu personagem Haziel, sacrifica a si mesmo pelo que acredita, por amor..."



Willians terminou de ler, dobrou cuidadosamente a folha de jornal e a pôs em cima da minha cama.

_ Você é um herói, Gib.

Tentei assimilar aquilo tudo. Claro, tinha lógica. Mas eu nunca havia pensado nessa possibilidade, afinal eu deveria estar morto.

_ Ora, vamos, Gibreel. O que foi agora? Devia estar feliz. – falou, interrompendo meus pensamentos. Suspirei, adquirindo forças.

_ Will, eu quero voltar para a clínica...



Uma semana. Sete dias inteiros internado pela segunda vez numa clínica de desintoxicação. A vontade de escrever faz minhas mãos tremerem. A vontade de usar heroína deixa meus dedos trêmulos de igual maneira. Não consigo escrever. Nunca mais vou usar heroína. Sento-me todos os dias diante do notebook, mas bloqueado para o mundo dos anjos caídos, apenas faço anotações, penso em Lynn, leio cartas de fãs, penso em Lynn, releio um contrato bastante lucrativo, mas ainda não assinado, e penso em Lynn. Há um porta-retrato ao lado da minha cama e nele as duas criaturas mais lindas e perfeitas deste mundo sorriem para mim. Sonhei com Lynn e Eleni na noite passada, na anterior também, e na outra... acho que sonho demais. Nos sonhos nada aconteceu e estamos juntos como uma família. Nas cartas de fãs eu não leio nenhuma pergunta sobre Haziel e Ariel, todos querem saber sobre mim e Lynn. Todos, inclusive eu...

...

Permaneci sentado com os olhos fitos no chão, certo de que era um ato completamente indelicado, pois, os outros falavam, davam seus testemunhos, contavam suas estórias, mas eu só conseguia olhar o piso da sala, que de tão lustrado, reflete como um espelho e, ao invés da minha imagem, eu via Eleni, minha filha, até mesmo suas palavras eu ainda posso ouvir. 'Giberel' – sorri como um bobo, como um pai bobo. E então minhas mãos começaram a tremer e as enfiei nos bolsos.

_ Gostaria de dizer algumas palavras, Gibreel? - perguntou Julia, a psicóloga encarregada do meu grupo. Durante um momento apenas a fitei e, senti-me um pouco idiota por estar ali novamente. No passado, Júlia, fora praticamente a responsável pela minha reabilitação. Seu apoio nos momentos difíceis, sua decisão única de ter me deixado passar um tempo em seu apartamento e aquela noite que num ato sem precedentes e do qual nunca mais conseguimos tocar no assunto, nos beijamos.
Fiquei de pé, e, com um gesto de cabeça cumprimentei aqueles que eu já conhecia. - velhos amigos de guerra...

_ Boa noite a todos, não é um prazer estar aqui, não estou feliz por rever os que já conheço, não deste modo... - olhei para o chão. Abri um sorriso amargo e ergui a cabeça novamente. _ O meu nome é Gibreel, tenho vinte e cinco anos e sou usuário de heroína desde os dezoito. Perdi muitas coisas por isso, assim como todos aqui, acredito... Droga! A última vez que estive aqui eu estava mais desinibido, eu acho. Não é que agora eu esteja menos confiante, ao contrário, mas no momento eu só consigo pensar em uma coisa... Eu tenho uma filha, ela se chama Eleni, é a criatura mais perfeita e linda da face da terra, creio que todos os pais acham isso de suas filhas, mas a minha, diferente das outras é mesmo a mais linda. – fiz uma pausa, ouvindo as risadas daquelas pessoas tão danificadas quanto eu.

...

A noite recebi uma ligação de Will.

_ Tudo bem, Gib?

_ Não, não está.

_ Abstinência? Bom, mas logo vai passar. Você já conseguiu uma vez, tenho certeza de que conseguirá de novo. Tem falado com Lynn?.

_ Pedi que ela não viesse me visitar.

_ E porque fez isso?

_ Porque no momento sinto como se um trem tivesse passado por cima de mim. Não quero que ela e nem minha filha me vejam dessa maneira. E de qualquer forma eu e Lynn não temos nada. Ela é casada, você já esqueceu disso?

_ Gibreel, ela esteve lá todo o tempo enquanto você estava em coma, todo o tempo. E o que vi nos olhos dela foi amor, entende? Estou cansado de vocês dois. É sério. Principalmente você. A vida é tão curta e vocês mais do que quaisquer outras pessoas deviam saber disso... Foi dada a vocês uma segunda chance...

_ Hitch, o conselheiro amoroso? – interrompi-o.

_ Vá à merda, Gibreel. Eu falo sério. Seu idiota, estúpido dos infernos.

_ Eu também te amo, garotão.

...

Há certa vantagem em se estar na mesma clínica pela segunda vez. Bom, você já sabe como tudo funciona, os horários, já conhece algumas enfermeiras e os médicos, já chega preparado, sabendo o sofrimento pelo qual vai passar. Mesmo assim você continua sendo um imbecil que voltou a usar drogas. Por exemplo; ou melhor ainda, no meu caso: Quero ficar sozinho. A companhia de outras almas viciadas me enerva. E não conseguir escrever sequer uma linha me deixa irritado ao ponto de querer destruir o notebook.

A pequena lagoa era quase um pântano quando estive aqui pela primeira vez. Houve uma substancial reforma, acho que imaginam que os viciados precisam de boas paisagens para ajudar em sua recuperação. A segurança também triplicou, agora até câmeras de vigilância estão distribuídas pelo vasto terreno.

Achei uma pedra de aparência confortável e me sentei. Os raios do sol caíram sobre mim e me dei conta de não estar sentindo tanto a falta de heroína, minhas mãos não estavam tremendo. Peguei uma pedra e arremessei na água, fazendo-a quicar por três vezes antes de afundar.

_ Eu achei que seu único talento fosse o de escrever...

Virei-me, mas a voz era confundível e eu já sabia quem era antes de vê-la.

Lynn vestia um casaco marrom por cima de uma blusa branca, estava de calça jeans e seus cabelos soltos brilhavam, emoldurando seu rosto lindo e angelical. Eu sorri, não queria que ela viesse, tinha pedido isso, mas estava feliz em vê-la.

_ Como pode ver também sou exímio atirador de pedras. Acha que consigo emprego num circo?

Ela riu e se aproximou até se sentar do meu lado e seu olhar se fixar em algum ponto do lago.

_ Eu sei que pediu para que eu não viesse, mas enfim você não manda em mim. – olhou para mim e me presenteou com seu sorriso. O sorriso mais bonito do mundo.

_ Verdade, você tem um marido para isso. – falei, arrependendo-me logo em seguida.

Lynn soltou um suspiro, pareceu cansada, e então lembrei que ela ainda estava em reabilitação devido ao transplante de coração.

_ Achei que tínhamos superado essa fase agressiva.

_ Peça o divórcio.

_ Gibreel... – ela murmurou.

_ Eu amo você, Lynn, e você também me ama. Isso é tão obvio, sempre foi. A porra do tempo ta passando. Eu não quero envelhecer, olhar para trás e ver uma vida toda desperdiçada e cheia de erros. Não quero estar no lugar errado daqui há dez, vinte anos. – ergui minha mão e segurei a dela. _ Eu amo você.

Lynn olhou para mim e por um momento eu a vi como a garota que conheci anos atrás, a menina sempre disposta a fazer qualquer coisa louca desde que estivéssemos juntos, a menina que um dia fez as malas para fugir comigo.

Mas essa imagem se desfez quando ela começou a falar...

_ Eu também te amo, arcanjo. Mas você não acha que o tempo já passou? Talvez
apenas amor não seja mais suficiente... Eu me sinto tão fraca agora, Gibreel. E quando olho para você tudo o que sinto é vontade de me jogar nos seus braços, porém antes eu sempre sentia que isso era a coisa certa a fazer independente de tudo. Mas agora eu tenho tanto medo... Tenho medo das coisas darem erradas outra vez. Temos Eleni agora, não se trata mais de nós dois, arcanjo. Dessa vez temos que pensar no que é melhor para ela antes...


Foi minha vez de suspirar. Soltei a mão de Lynn e olhei em uma direção qualquer sem realmente estar focalizando coisa alguma.

_ O melhor para ela não é ficar com os pais? – indaguei.

_ Ela precisa de estabilidade e segurança...

_ Claro, e tudo isso um drogado não poderia dar, certo?

_ Pare de distorcer as coisas que digo, Gibreel. – Lynn respondeu sem paciência.

_ Estou traduzindo, e não distorcendo.

_ Eu acredito na sua recuperação.

Ficamos os dois em silêncio. Levei uma mão até o alto da minha cabeça, enfiando os dedos pelos fios de cabelos, empurrando-os para trás. Eu estava nervoso, achava que quando esse encontro acontecesse tudo ia ser diferente, voltaríamos, seriamos uma família, mas me senti decepcionado, injustiçado e irritado com tudo, com o mundo inteiro. Minhas mãos voltaram a tremer, tentei esconde-las de Lynn, mas ela notou e passou seus braços evoltado dos meus ombros, abraçando-me de forma protetora.

_ Você vai superar isso. – ela disse no meu ouvido e beijou meu rosto.

Fechei os olhos, e minha cabeça encontrou com a dela.

_ Você precisa sair daqui logo. O mundo lá fora ta uma loucura, arcanjo. Seus fãs me perseguem pelas ruas, pedem que eu autografe seus livros. Acredita nisso? Repórteres querem que eu dê entrevistas e fale sobre a sua tentativa de me doar seu coração. Eles falam de você como se fosse um herói. Fotos suas estampam revistas, todos te chamam de arcanjo, sinto ciúmes disso. Eu inventei o apelido, devia ser a única... – ela riu, deu-me mais um beijo no rosto.

_ Você é a única. Sempre foi...

Nossos lábios se encontraram, tudo que parecia errado ficou direito naquele momento. Eu a puxei para mim e a beijei de uma forma tão apaixonada que, mas parecia ser uma despedida, como se fosse nosso último beijo...

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Tangled Up In You.





Eu sei que isso não é possível, mas de uma forma estranha, é como se eu tivesse tato suficiente pra sentir a heroína me invadindo, correndo pelas minhas veias como se fosse a lava de um vulcão. Esta me queimando! Esta me destruindo por dentro, está me matando! Chega ao coração e explode como um meteoro, espalhando-se pelo meu corpo como se fossem milhares de fagulhas, todas com um único objetivo, chegar ao cérebro e fazê-lo parar!

Arrastei-me até o sofá. Fiz isso completamente cônscio da minha degradação. Fiz isso me sentindo um nada. No entanto, ri disso. Ri descontroladamente dessa merda toda! Eu simplesmente sou incapaz de não rir! Lynn vai morrer. Eu repeti inúmeras vezes que isso não ia acontecer, mas agora sei que vai acontecer, e não posso permitir... E o melhor pra Eleni é ficar com Matt. E o melhor pra Gibreel, estava dentro daquela seringa, mas agora corre dentro de mim e, dessa vez, sem anjos caídos, sem hospitais, sem segundas chances, apenas silêncio. Silêncio e paz.

Alcancei o telefone celular e disquei os números.


_ Alô. - atendeu Willians. Eu reuni forças pra dizer o que era preciso. Mas meu raciocino está lento, embotado pela droga.

_ Alô, tem alguem na linha?

_ Sou eu, Gibreel. Eu fiz Willians... agora não há volta. Por favor, faça sua parte. Você disse que ela era a próxima na fila de espera, então dê meu coração para ela. Ele sempre foi dela mesmo... – o quarto começou a girar agora. Foi necessário uma força incrível pra manter o telefone no ouvido.

_ Seu doente mental! Gibreel, seu filho da puta! Eu não acredito nisso. Meu Deus! - esbravejou o doutor Willians, antes do médico, nosso melhor amigo, meu e de Lynn.

_ Você disse que o coração dela não suportaria mais uma semana.

_ Eu também disse que ela é a próxima na fila de espera, o que significa que há qualquer momento um coração pode aparecer.

_ Diga a ela que eu a amo. – desliguei o celular. Não vai demorar e ele virá com uma ambulância, sei que fará isso.

Respirar começa a ser a coisa mais difícil do mundo. Meu corpo pesa como chumbo. Deixo-me cair deitado no sofá. Levo minhas mãos ao peito. Acho que estou pronto pra isso. Está pronto para isso, Gibreel? Não. Eu queria ver Eleni crescer. Eu queria ver as pessoas lendo meu livro no parque, nos ônibus, nas cafeterias. Eu queria, eu queria, eu queria. Eu acho que isso nunca acaba...


_ Eu sei que está ai, Haziel. Não me importo com o que você pensa ou deixa de pensar, mas acho que dessa vez, a última vez, enfim, eu consegui fazer algo que você faria... Tenho certeza de que faria o mesmo por Ariel. Estou certo?

Ele surgiu, mãos nos bolsos como sempre, a cabeça ligeiramente curvada para frente e os cabelos castanhos claros cacheados cobrindo seu rosto. Toda aquela expressão de tristeza que eu estou cansado de descrever. Haziel, anjo caído, híbrido, guerreiro, sofredor. Não falou absolutamente coisa alguma, não que ele fosse de falar muito, mas sorriu. Haziel sorriu. Pior ainda, sorriu de um jeito meio sacana, como se soubesse algo que eu não sei. Então se foi, ou eu que fui... ou ambos fomos. Alguem apagou a luz, as cortinas desceram. Fim de show, Arcanjo.






A primeira coisa que vi quando abri os olhos foi Lynn. Mas não a Lynn abatida, a Lynn deitada numa cama de hospital com um coração fraco lutando desesperadamente pela próxima batida. Não. Abri os olhos, estava num quarto de hospital com um número incrível de parafernálias médicas presas ao meu corpo e a Lynn que eu conheço e amo inclinada sobre mim, segurando minha mão e sorrindo tão feliz como se houvesse testemunhado um milagre. Ela me esmagou com um abraço, senti suas lágrimas aquecerem o meu rosto. Eu não faço idéia do que está acontecendo, mas a abraço com toda força que possuo.

_ Você está viva e eu também? – perguntei. Ela sorriu.

_ É claro, besta. – respondeu. Linda. Linda. Linda!

_ Mas e o seu coração? E o meu coração? Eu estou confuso... – o sorriso de Lynn intensificou-se. Era contagiante, eu sorri junto com ela, mesmo sem fazer idéia do porque.

_ Quando Willians me contou sobre a estupidez que você fez, quando ele disse que você estava em coma e tinha deixado a ordem para que seu coração fosse doado para mim, eu pedi a ele outra coisa... – ela se calou, fazendo mistério.

_ O quê? – indaguei.

_ Que se eu não conseguisse um coração ele transplantasse o meu cérebro para a sua cabeça vazia. O que você achou, Gibreel? Achou que eu fosse aceitar isso? E ficar aqui viva num mundo onde não existe você? – tocou meus lábios com os seus.

_ Lynn, as vezes eu acho que nossa vida é uma novela, um filme, um desses romances idiotas que vendem nas bancas de jornais.

_ Se a nossa vida é um filme ao menos poderiam ter colocado o Brad Pitt no seu papel, não? - infelizmente não tenho forças para socá-la, então apenas fiz uma fingida cara de fúria. Ela deu uma gargalhada e acariciou meu rosto.

Willians entrou no quarto, vestido com o tradicional jaleco e uma prancheta nas mãos.

_ A bela adormecida acordou depois de quase um mês de coma. Seja bem vindo de volta, Gibreel, o Arcanjo maluco. O que posso fazer por você, meu amigo? – parou ao pé da cama. Willians sorria, realmente feliz por me ver bem. Nunca disse a ele o quanto a sua amizade significa pra mim.

_ Pra começar você pode jogar a Lynn pela janela para ver se ela encontra com o Brad Pitt lá embaixo. Hunf. – tentei não rir.

_ Ah, claro, e depois eu escrevo dois relatórios de óbitos, porque é mais do que óbvio que o senhor vai pular atrás dela para salvá-la. – piscou para Lynn e os dois riram.

_ Hum. Eu estava falando aqui com Lynn, Willians, sobre a nossa vida ser uma novela. E então você é apenas um figurante, acho que está com falas demais para o meu gosto... – e dessa vez nós três rimos.

É tão irreal isso, é bom, claro. Mas os últimos tempos foram tão complicados e de repente quando você chega ao fim do poço, quando acha que é o último ato e de fato as luzes se apagam, então vem a luz, ela aquece você, te faz sorrir. É como uma segunda chance, no meu caso talvez seja a vigésima chance. Mas o fato é que eu de repente me sinto feliz.


''And In This World
Where Nothing Else Is True
Here I Am
Still Tangled Up In You
I'm Still Tangled Up In You
Still Tangled Up In You''



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sexta-feira, 15 de maio de 2009

All The Way For You.

_ Saudações, Milorde Sorveteiro. Chamo-me Sir Gibreel, cavalheiro da távola de chocolate. Está aqui ao meu lado a princesa Eleni do reino encantado dos picolés de cerejas. Viajamos longas distâncias para encontrá-lo, Milorde. Viemos em busca do sorvete sagrado de baunilha. Lady Eleni foi escolhida pelas fadas para recebê-lo. - o sorveteiro arregalou os olhos, fixando-os em mim. Pareceu avaliar a extensão da minha loucura, no entanto, pisquei um olho para ele e em seguida olhei para Eleni, que segurava minha mão com uma expressão de pura incredulidade, mas com um vestígio de sorriso nos lábios.

_ Tem certeza disso, Sir Gibreel? Está é mesmo a princesa escolhida pelas fadas? - perguntou o sorveteiro, fazendo cara de mistério.

_ Mas é claro e posso provar o que estou dizendo. - respondi-lhe, estufei o peito, como se a simples menção de Eleni não ser uma princesa fosse algo ultrajante.

O sorveteiro deu a volta, deixando a barraquinha de sorvetes e veio a ficar de frente para mim e Eleni.

_ Preciso ter certeza, Sir Gibreel, o sorvete sagrado de baunilha não pode cair em mãos erradas...

_ Entendo perfeitamente. - agachei-me, ficando quase da mesma altura que Eleni. _ Princesa Eleni, Milorde Sorveteiro deseja ter certeza, tem de mostrar pra ele a marca...
Eleni olhou para mim, depois encarou o sorveteiro. Ergueu seu braço, com a palma da mão virada para cima, expondo uma pequena marca de nascença que, no momento, para todos os efeitos, foram as fadas que tatuaram. O sorveteiro olhou a pequenina mão em sua frente, em seguida caiu de joelhos no chão.

_ Longa vida a princesa, Eleni. - eu bradei.

_ Longa vida a princesa, Eleni. - retrucou o Milorde Sorveteiro.



Voltando para o parque, princesa Eleni devorando o sorvete sagrado de baunilha, e eu como um bobo somente a olhando. Aliás, tenho estado como um bobo durante esses três meses em que a conheci. Lynn tinha toda razão, não há como negar que Eleni seja minha filha, o jeito que a imaginação dela é fértil, a forma como fica quietinha, apenas ouvindo, como se tivesse sido teletransportada para as paginas dos livros que leio para ela, lembra a mim mesmo quando criança.


Chegamos a um banco.

_ Vamos sentar aqui um pouco, princesa, eu já sou velho e não aguento andar tanto. - ajudei ela a se sentar e fiz o mesmo ao seu lado. Eu queria Lynn aqui... ao invés de num hospital, aguardando um transplante de coração com muitas poucas chances de acontecer devido ao seu tipo sanguíneo raro, O negativo.

_ Minha mãe vai morrer, 'Giberel'? - a pergunta cortou o silêncio, livrando-me dos meus pensamentos. Deixei que meus joelhos tocassem o chão. Segurei Eleni pelos ombros, olhando dentro dos seus pequeninos olhos.

_ Nunca mais repita isso, princesa. Eu prometo a você que logo sua mãe estará em casa e vamos levá-la até o reino das Fadas para que ela possa ser marcada e assim ganhar um sorvete como o seu. Confia em mim, Eleni? - alisei seus cabelos.

_ Sim.
- jogou-se em meus braços e eu a beijei.



Duas horas depois, já tendo deixado Eleni na casa da mãe de Matt, eu corri como um doido, peguei o primeiro táxi que surgiu na minha frente. Só então respirei, sentado no banco de trás do táxi, olhando através do vidro e vendo em todos os cantos o rosto de Lynn. Não consigo evitar de pensar nela, de imaginá-la deitada na cama do hospital. É claro que estão cuidando super bem dela por lá, e o médico responsável pelo seu caso, Willians, alguém que conhecemos há séculos. Ela vai ficar bem. Ela vai ficar bem... Mas na minha imaginação de louco, é como se ela estivesse trancada numa masmorra, tendo dragões como carcereiros.

O celular vibra no meu bolso. No mostrador digital o nome de Matt.

_ Matt, algum problema com Lynn? - pergunto diretamente.

_ Ela que ver você, Gibreel. Pediu pra que viesse depressa. - Matt falou com uma voz tão fraca que por um momento, apenas por um segundo, eu temi pelo pior, no entanto, repeti novamente. "Ela vai ficar bem..."

_ Estou indo. - desliguei o celular. _ Hey, motorista, mudança de planos. Leve-me ao St. Louis e acione os propulsores para a velocidade da luz.



Subi as escadas, não escalei-as, como um alpinista experiente. Cheguei no andar de Lynn com o coração quase saindo pela boca. "Ela vai ficar bem".

''… and rather user my mouth to kiss, your frown away
so your doubts no longerlongerndarken your day
so you can hold your head up high come what may."


Vi Matt sentado em um banquinho em frente a porta do quarto de Lynn. Fui caminhando pelo corredor, vendo-o ali com a cabeça abaixada. Eu ia perguntar algo a ele, mas não queria ouvir sua resposta... Fui direto até a porta.

_ Gibreel... - ouvi-o chamar meu nome. Não o olhei. Entrei no quarto e fechei a porta.

''So please, remember that I'm gonna follow through all the way ...all the way''

E ela nunca me pareceu tão linda... Mesmo deitada ali com uma aparência tão frágil quanto a de um fino cristal. Dei passos curtos em sua direção e me sentei num banco ao lado da cama. Estiquei minha mão pelo colchão até alcançar a sua. "Ela vai ficar bem..."

Lynn abriu os olhos, logo, seus lábios se moveram para formar um sorriso. Ela sorriu, e mesmo com todo o meu desespero, senti-me incapaz de não retribuir aquela dádiva. Eu sorri, mas pensei em alguma formula mágica que pudesse me impedir de chorar.

_ Você não tem mesmo noção do quanto é bonito, não é? - perguntou Lynn. Eu arqueei uma sobrancelha.

_ Eu falo sério, Gibreel. Perdi muito tempo pensando nisso... E chegava sempre a conclusão de que você era demais ligado as suas histórias, ao seu mundo interno, e por isso nunca se deu conta das moças que o olhavam com interesse.

_ Você esta errada... - retruquei.

_ Ah, estou?
- ela indagou.

_ Está sim. Eu nunca prestei atenção em nenhuma outra moça porque só tinha olhos pra você.

Ficamos em silêncio. Encarando um ao outro. Eu pensando no nosso primeiro beijo, e ela, eu teria dado uma moeda pra saber em que ela pensa.

_ Tenho duas coisas pra falar, Gibreel. A primeira coisa é que já falei com Matt e Eleni vai ficar com você...
_ O quê? - tive de interrompê-la. _ Corta essa,você vai ficar bem...

_ A segunda coisa é que te amo e quero que me beije, quero que fique aqui, ao meu lado...

Enchi sua face de beijos. Beijei seus lábios, seus olhos e bochechas. Cada centímetro de seu rosto lindo. Quando dei por mim já estava deitado junto de Lynn, ainda beijando-a. Abracei-a tão forte, como se a intensidade do meu abraço pudesse impedir que a levem de mim...

_ Eu fui um maldito viciado a vida toda, ferrei com tudo, Lynn. Acabei com nossas vidas... acabei com tudo. Eu nem consigo pedir que me perdoe, não consigo porque considero tudo imperdoável. E você estava certa, eu errado. Não te culpo por ter ido. - afundei meu rosto por entre seus cabelos, escondendo minhas lágrimas, tentando me esconder da realidade. Pensei num mundo diferente...

… um mundo onde estamos juntos. Um mundo feito com as suas cores favoritas.

"Ela vai ficar bem..."

_ Não. - ela exclamou. Segurou-me pelo rosto, puxando-me, assim tive de encarar seus olhos que, ao contrário dos meus, ao invés de lágrimas, pareciam mergulhados num poço de serenidade. _ Você foi, você é a coisa que mais amo nessa vida, Gibreel, você foi meu arco-íris, minha melhor imagem, minha cor favorita, você foi minha inspiração sempre, mesmo quando estávamos longe, mesmo quando erroneamente não era entre seus braços que eu dormia, foi sempre em você que pensei. Sempre, Gibreel, Sempre. - puxou meu rosto até seus lábios.

_ Eu amo você, Lynn. - disse-lhe.

_ Também te amo, Gibreel, meu Arcanjo.


...


"Parece que importa o que eu faço,
por isso estou guardando isto para você
Pois este parece ser o último pedaço,
que você ainda não teve oportunidade de experimentar
Fragmentos de uma vida que você não deveria perder

Parece que importa o que eu digo,
então irei segurar minha língua
E, em vez disso, usar meus lábios para te animar
Para que as dúvidas não entristeçam seu dia
Para que você possa manter a cabeça erguida aconteça o que acontecer...

Então por favor,
lembre-se que eu vou seguir até o fim ...até o fim

Porque parece interessar aonde eu vou, então vou sempre te dizer
Que o lugar que estou nunca é longe
Que você sabe que não está só, não se preocupe
Vou te encontrar onde quer que você esteja

Por isso lembre-se que eu vou seguir até o fim

Oh, meu amor, se isso é tudo que posso fazer, irei me
render por você
Porque eu sempre me erguerei quando cair, desde que
esteja junto com você
Oh, meu amor, se isso é tudo que posso fazer, irei me
render por você e dar tudo de mim por você."

domingo, 10 de maio de 2009

Bleeding Heart.

02h00min pm.

O telefone... Estiquei o braço, mas parecia simplesmente inalcançável, parecia sorrir, zombando da minha vã tentativa de pegá-lo. – maldito, só mais um pouquinho. – e mais uma fisgada, pontada, como se uma adaga fosse cravada em meu peito. Não sou tolo e sei exatamente o que esta acontecendo. – muito prazer, Gibreel, sou a overdose por heroína. Primeiro vou fazer com que você não consiga respirar, em seguida diminuir sua pressão e temperatura corporal. – Meu Deus! Eu não consigo respirar, maldito celular, maldito. – mais um dedinho, um dedinho... – peguei.Atende, atende, atende.
_ Emergência...

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"Estou caindo. Literalmente despencando do céu, mas não tenho certeza se caio para a terra ou, mesmo que seja muito incongruente, para o céu. Faço piruetas, volteios loucos em queda livre, meu corpo gira incessantemente e o vento chega num açoite, quase me partindo em dois, mas eu me sinto bem agora... E Haziel esta ao meu lado, ele também, afinal o pobre não tem mais suas asas."

"_ Hey, Haziel, para onde vai tão depressa? – perguntei, fazendo o impossível que é falar caindo de tamanha altura."

"_ Estou apenas acompanhando você. – o anjo caído respondeu."

"_ Vou nascer de novo? – perguntei."

"_ Você não tem que morrer para nascer de novo, Gibreel. – retrucou Haziel."

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_ Seja bem vindo novamente, Gibreel. Sente-se melhor esta manhã? - disse, perguntou o Doutor Willians. Suas palavras me pareceram distantes, eu havia acabado de acordar.

_ Sim, eu me sinto melhor. Hoje parece que a passeata dentro da minha cabeça diminuiu, ficando só uma pequena banda. – respondi.

_ Você tem visita, vou deixá-lo a sós com ela. – ele falou e foi saindo. Mas... mas...
_ Quem é Doutor? Hey, me diz quem é que veio me visitar ou vou ter parada cardíaca, juro que vou, doutor. Vou ter uma parada cardíaca só pra te dar trabalho. - o doutor riu e deixou a sala. E em seguida ela entrou. Lynn. Eu soltei um suspiro.

_ Vai acreditar se eu disser que levei um tombo quando tentava trocar uma lâmpada?

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- Desculpe-me por incomoda-la há essa hora senhorita, mas este foi o único numero disponível que encontramos no apartamento dele.

- Não se desculpe, fez bem em ligar, como ele está?

- Nada bem – a voz indiferente da secretaria soou novamente pela monotonia de estar anunciado mais um dos muitos casos em plena madrugada.

– É overdose, já sob controle.

Lynn dirigiu como louca aquela manha logo após o receber a chamada desastrosa de que Gibreel conseguira com sucesso novamente uma overdose. Tomou todo o cuidado de sair sem acordar Matthew, que certamente não a deixaria vê-lo sozinha. Esperou por exatos trinta minutos quando Willians, o médico de plantão, adentrara a sala de espera para dizer-lhe que ele havia finalmente acordado.

Choque. Choque e aflição foi o que sentiu quando o viu ali, deitado sobre os lençóis imaculadamente brancos, os cabelos lisos em desalinho caindo numa massa escura sobre a testa. Não pode deixar de sorrir quando aquela voz tão deliciosamente familiar fez – se ouvir em tom de brincadeira ao vê-la. Encolheu-se encostando – se no batente da porta que fechou logo atrás de si e passou os olhos em revista pelo quarto.- Você sempre foi chegado a mordomias hospitalares, não é? – ela troçou de volta antes de fita-lo séria.

- O que foi que houve desta vez, hã? Liguei para o Randall esta manha para avisar que chegaria mais tarde por vir te ver e que consequentemente você entregaria sua pauta mais tarde e ele me contou que foi demitido. Foi esse o motivo pra se drogar, se é que existe um motivo pra manter – se sóbrio? – Ela sabia o quanto ele odiava seus sermões fraternais, mas não se importou continuando seu discurso ensaiado, a voz elevando-se consideravelmente.

- O corpo humano tem limites e você sabe disso, se quer mesmo se matar corte os pulsos, por Deus! Haziel deve mesmo estar com você o tempo todo, caso contrário não teria tanta sorte assim. Tantos problemas foram desencadeados por isso e você não toma consciência... – ela deteve-se momentaneamente, Williams havia pedido que ela se contivesse,

- Ele precisa de apoio – fora o que ele dissera. Gibreel não precisava de apoio, e sim de uma clinica. Ela ainda não havia se aproximado da cama onde ele estava, e sentia-se uma intrometida com aqueles olhos infernalmente perturbadores a encarando silenciosos. Ele estava muito mais abatido desde a ultima vez que o vira, há um mês, talvez. Ciente de que ele continuaria em silencio para irrita – la ela direcionou uma das mãos ate os cabelos, penteando com os dedos, as madeixas douradas que lhe caiam sobre o rosto para trás.

- O que vamos fazer agora? Sem emprego, metido com coisas que não pode controlar e com certeza sem dinheiro.Ela sabia que ele diria que o problema era seu e o que faria a seguir não a importava, mas ela o conhecia tanto quanto a si mesma e fazia idéia do quanto ele estava inquieto. Ignorando qualquer resposta limitou – se a abrir a porta e resmungou, antes de lhe lançar um ultimo e desesperado olhar.- Vou leva – lo pra casa, se é que já teve alta.

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Seria fraqueza demais dizer que morri quando ela me deixou? Não, na verdade seria hipocrisia demais... – veja bem, todos sem exceções são hipócritas. A vida em si faz da hipocrisia algo inerente ao ser vivente. Não há nada que eu odeie mais do que a hipocrisia, contudo, como membro ilícito da raça humana, eu não ouso negar a sua existência em mim. – mas gosto de acreditar que combato ferozmente minhas tendências hipócritas. – Eu não disse nada, fiquei calado e ouvi toda a torrente de palavras que Lynn despejava. Por mais que controlasse os impulsos que exigiam respostas para perguntas como. "Porque você não ficou comigo?" e "Porque esta aqui, ainda me ama?". Uma pergunta mais covarde que a outra. Não, não e não, eu fiquei calado, somente ouvindo-a e saboreando a parte de mim (a maior parte), feliz em revê-la.

Uma verdade triste e uma eterna:

Ela está mais bonita que na época em que estávamos juntos; certamente a vida com um dependente de heroína não deve contribuir para aparência de ninguém...

Eu vou amá-la para sempre, minha eterna verdade.

Ok, Gibreel, vamos lá, você pode fazer isso... Conte até três, diga que aceita ir para uma clínica, diga que ama e que precisa dela.

1, 2, 3 e já...

_ Eu... eu... esperava que trouxesse flores, você sabe, eu sempre achei elegante nos filmes, toda vez que se vai visitar um enfermo no hospital as pessoas levam flores. Odeio essa sua indisposição para o clássico, para o que é de praxe. – abri um sorriso bobo, na verdade me senti um comediante sem platéia.

_ Acho que já me deram alta sim, eu perguntei ao Willians se ele acha uma boa idéia eu contratar uma enfermeira e ele respondeu que conhece uma bem gostosa que dorme com o "serviço". Vou contratá-la assim que eu conseguir vender algumas frases. Pra piorar tudo acredita que o meu notebook quebrou? Foi sim, mas não foi exatamente minha culpa e sim daquela maldita parede dura como ás de um presídio. Eu nem havia jogado o notebook com tanta força... euaindaamovocêenãoconsigosequerformularumpesamentocoerenteemsuapresença. Mas enfim... Ces’t la vie. Vou ficar feliz de ir pra casa com você e depois te ver partir. Vou erguer a mão e te dar um até logo, talvez antes eu pergunte sobre o filho da puta que agora dorme contigo, sobre o cachorro, o trabalho e as mudanças climáticas mundiais e a crise econômica.

Calei-me, não consegui mais olhar pra ela. Eu ia chorar, então virei o rosto na direção da janela e fiquei fitando o nada enquanto uma lágrima aquecia minha face.

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Ela sempre tivera adoração por aqueles olhos. Eram muito bonitos e ele sempre conseguia dizer tudo com apenas um olhar. Como explicar? Em outros tempos, quando ele a fitava com aqueles olhos, sentia - se mais que desejada, sentia - se despida, pequena, ingênua, indefesa, tudo ao mesmo tempo.O que ela deveria ter feito para mante – los juntos? Para ele certamente aquilo podia ser considerado um abandono causado pela falta de interesse, talvez. Nos últimos meses antes da separação alem de contribuir para o caderno feminino e patético do jornal local, tinha um emprego safado de garçonete. Era bem tratada, até por que o patrão sabia que ela atraía alguma freguesia, e ela sabia disso. Pedia um salário razoável, e recebia corretamente, mas não era o bastante para um casal. Dia após dia, todas as tardes esperava ansiosa para tirar aquele avental ridículo de garçonete e ir ao encontro dele em casa, num ultimo fio de esperança de que o encontrasse bem, disposto e escrevendo, o que nunca aconteceu. Seus pensamentos foram interrompidos pela voz rouca e carregada dele que fez – se ouvir pela segunda vez. Arqueou levemente uma das sombracelhas e voltou a encara - lo.

Ouviu com as mãos tensas que se agarravam a fechadura que parecia escorregar em sua palma lisa e ligeiramente úmida o que ele dizia, limitando – se a fitar aqueles lábios que antes a beijara com tanta lascívia. Desviou os olhos, confusa. O que ele dissera? Não sabia ao certo, mas tinha a plena certeza de que qualquer coisa que ouvira sobre ama-la seria uma invenção do seu inconsciente. Ele nunca tinha negado um olhar, nem baixado a cabeça antes. Mas, naquele momento, havia optado por ceder, e ela conscientizou-se disso quando ele virou o rosto. Lynn hesitou. A palavra dor veio em sua mente. Ele não disse, mas ela leu em seus olhos, que não mais a encaravam, mas que segundos atrás pareciam livros abertos. Ela baixou a cabeça, recusando - se a olhar para ele. Esperou que ele tornasse a falar, mas isso não aconteceu. Passos breves e ela estava diante dele. Tomou-lhe uma de suas mãos e a envolveu com suas próprias, elevando – a até seu rosto e desceu seus lábios mornos sobre a palma fria dele. Sabia que se ele se voltasse encontraria dois olhos injetados, vermelhos.

- Vai ficar tudo bem, nós vamos conseguir um outro emprego, ou posso voltar a falar com Randall, nós podemos conseguir um outro notebook pra você, eu posso trazer o que uso no jornal pra casa e te emprestar o que nós dividíamos. Você sabe que não está nas melhores condições, mas se prometer que não o jogara contra a primeira parede que ameaçar te esmagar posso leva-lo ao seu apartamento. Vamos lá Gibrie, este não é o garoto rebelde e indisciplinado que conheci.

"E então tudo vai voltar a ser como antes, meu amor..." - foi a primeira frase consciente que sua mente formulou sobre a saudade que sentia dele depois de longos e deprimentes doze meses. Uma frase idiota, aliás, sem sentido, pois estava tudo mergulhado no escuro, o que vivera com ele deveria estar mergulhado no esquecimento. Mas, no momento, seu cérebro só conseguia registrar dor, ela tentava sorrir enquanto dava leves tapinhas na mão dele. Ele não podia chorar, não podia tortura-la a tal ponto, queria seu garoto forte de volta, aquele que a fizera apaixonar- se irremediavelmente em seus precoces dez anos. A conversa fluía fútil, apenas da parte dela. Na verdade, parecia que nenhum dos dois estava verdadeiramente ali, ela queria sair o mais rápido possível, soltar-lhe a mão, afastar-se daquela pele que ela conhecia como ninguém a textura, o gosto e o calor. Queria sair e se afundar em lembranças, sem ter aquela presença por perto.

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Ah, Deus, ela tinha mesmo de fazer isso? “... vai ficar tudo bem...” – disse-me, mas não é verdade, apenas um estado transitório de ilusão. Quantos outros parecidos, similares tivemos, hein? Eu num telefone público, envolto, coberto pela neve caindo em flocos tão finos quanto as minhas lágrimas, ouvindo sua voz no telefone dizendo-me que tudo ficaria bem e que eu só precisava voltar pra casa e me aquecer.Nada vai ficar bem, tudo está irremediavelmente quebrado, em cacos e eu me vejo como um tolo procurando juntar os pedaços.

Esse é o nosso Inferno. Merda! Cada palavra dita por ela soou e deslizou com uma carícia, dando-me mais conforto que o toque da sua pele que só me faz tremer. Meus olhos continuaram fixos na janela. Pensei em dizer a ela que tudo só ficaria bem se voltasse para mim, que pouco me importava um novo notebook, que não me resta mais inspiração sequer para uma sílaba. – durante muito tempo este fora o meu refugio.

O maldito mundo podia desabar e ainda assim eu teria uma infinidade de outros mundos sobre meus dedos, mas ela se foi, arrastando tudo consigo inclusive a parte da minha alma usada para escrever. – fiquei com o demônio branco, a heroína me pareceu sedutora demais naquela época e eu mergulhei de cabeça. Ela esta noiva, ele é um bom sujeito, livre, capaz de fazê-la feliz, diferentemente deste rascunho fodido de um ser humano que sou. - coragem, força de vontade. Vamos, Gibreel, faça o que precisa ser feito. Liberte-a, deixe-a ir...

_ Não é necessário, obrigado. Não quero nada. Fique com a sua caridade. - puxei minha mão de volta, afastando-a dos seus dedos delicados e mornos, dos seus lábios carnudos, úmidos e quentes. – eu daria um braço, arrancá-lo-ia eu mesmo em troca de um beijo seu.
Muito bem, Gibreel, como um boxeador; direita, esquerda, direita, esquerda, gancho. E o nocauteado é você.


_ Quero que vá embora, Lynn. – ainda sem ter coragem de olhá-la novamente. Enxuguei os olhos com a manga da camisa.

_ Você já veio até aqui e fez o seu papel de Madre Teresa do Calcutá. Agora vá, não necessito de uma babá... E me senti sendo partido em pedaços.

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Um soco na mente... ou mais precisamente no estomago? Lynn empalideceu ante as duras palavras de Gibreel. Ela ouvia o que ele lhe dizia e sentia inúmeras bofetadas ardendo em seu rosto. Ele sabia exatamente o que fazer e dizer para magoa – la e ela tinha a consciência de que ele estava tentando afasta – la. Seus olhos verdes escureceram – se e lágrimas grossas abriram caminho salgando seu rosto em chamas. Ele havia rejeitado seu carinho, assim como o fizera há um ano atrás. Depois da ultima frase um silêncio dramático encheu o ambiente, até ser interrompido pela respiração entrecortada dela.

Engolindo o nó incomodo e dolorido que fez – se em sua garganta ela começou, trêmula.- Sou uma mulher comum e como você mesmo costumava me taxar, uma sonhadora, não posso fazer absolutamente nada pra mudar o fato de que a demência do seu mundo não me infectou. Você querendo ou não eu não vou me render ao suborno da razão, eu quero sonhar! Você só tem que mover a pedra, fazer a sua parte, abandonar o lamento e sair da inércia, do coma profunda da mente e da alma.Ela tomara distancia considerável do leito e estava prestes a desmoronar. Jamais, desde a separação ela havia tocado no assunto com ele, Matthew ou quem quer que fosse.

O ressentimento pulsava latente e ela só sentia vontade de gritar a plenos pulmões tudo o que não dissera e o que provavelmente nunca diria. O que afinal ele queria? Que ela tivesse caído com ele? Ela sempre fora contida e desde menina a única pessoa em quem confiava o bastante para chorar e lamentar sobre seus problemas estava diante dela, recusando seu auxilio.Sem saber o que fazer com as mãos, sem entender porque ainda continuava a encara – lo ela encolheu instintivamente os braços, como um animal de pata ferida que receia ser machucado novamente. Apertou os olhos e sibilou vagarosamente, o tom angustiante e sentido de sua voz fazendo – se perceber.- Sua redenção será maior que a queda. - encerrou, seca. Os olhos lacrimejantes procuravam freneticamente por um milagre que não estava ali, alguma coisa que a salvasse daquele homem tão desejado quanto repulsivo. Sentia – se enjoada e seus olhos ardiam como se o sol estivesse a poucos centímetros cegando- a. Tateou confusa novamente a maçaneta e ganhando o corredor afastou – se apressadamente deixando o quarto, aquele odor hospitalar revirando – lhe o estomago.

Gibreel sempre parecera insensível a sua dor, mas ela sabia que ele estava tão machucado ou mais que ela.

Por Mai & Rob.

Lynn Austen.

O primeiro amor.
O primeiro beijo.
O primeiro namorado.
A primeira transa.

Em que mais Gibreel poderia ocupar o primeiro lugar na vida de Lynn Austen? Foi com ele que dividiu o primeiro cigarro, a primeira seringa, o primeiro porre, a primeira ressaca. Ele tomou para si sua inocência, deixando no lugar parcelas exageradas de libido das quais compartilhava de bom grado. Dividiu com ela a adrenalina de uma fuga planejada de casa aos treze anos, enquanto riam juntos nervosamente com o medo de que seus pais os alcançassem e mantivessem sua garotinha fora do alcance daquele garoto psicótico, perturbado e esquisito.
Ela o amava com toda a sua personalidade excêntrica e seu modo transviado de levar a vida. Ele era um espírito livre, indisciplinado, recalcitrante, não – conformista e politicamente incorreto que Lynn sempre quisera ser, se tivesse coragem o bastante. A encantava com sua verve inquebrantável, não importava o quão complicada sua vida se tornava, ele sempre a lembrava de suas simples alegrias. Não importava quando exigências lhe fossem feitas, ele nunca a deixava esquecer que a desobediência voluntária valia a pena. Num mundo de caciques ele era seu próprio senhor, o simples pensamento de perde-lo dilacerava sua alma, toda a sua fascinação provinha da sábia, singular e deliciosa loucura que dele emanava. Dividiu com ela a alegria de finalmente morarem juntos aos dezessete anos, logo após encerram os estudos.

Momentos bons. Aconteciam sucessivamente coisas boas demais até para que ela acreditasse: vivia num sonho delirante, via- se subitamente feliz, mais do que jamais estivera em toda a sua vida. Risos. Beijos. Abraços apertados e carícias íntimas denunciavam o amor. Ele costumava deitar-se com ela na cama estreita que dividiam, a aninhava em seu peito nu e com suas pernas enroscadas ele beijava seus cabelos com doçura numa prévia calorosa. A envolvia numa redoma encantadora de carinho e começava, com aquela voz rouca, macia e carregada a ditar-he o que havia escrito, contando-lhe de Haziel. Descobriu que o amor era mais do que sabia: muito mágico, brilhante. E era seu, finalmente. O amor pleno, belo, eterno e certo, aquele pra sempre.

O Fracasso.
A decepção.
A loucura.
O Fim.

Quatro anos mais tarde passaram a comentar que a aparência ligeiramente anêmica dela não combinava com sua alegria de espírito, alegria esta que Gibreel sugava com uma mesma agulha, limpa todos os dias, para injetar em doses exageradas em si mesmo. Lynn queria ser sua mulher, e não mais a namorada que apoiava absolutamente todas as suas loucuras. O controlava em suas explosões emocionais compartilhando com ele a dor de suas lagrimas que não faziam qualquer sentido. Ele fora demitido de seu ultimo emprego, o ultimo da lista de três nos últimos oito meses. Passava mais tempo trancafiado no quarto do que o normal, enquanto ela ainda escrevia colunas triviais para o jornal local comentando sobre a ultima moda em Paris e a gastronomia excepcional, que ela nunca provara, dos restaurantes mais sofisticados da cidade. "Você tem talento para escrever Lynn, gostaria de poder torna-la fixa um dia, se possível." – dizia Randall ao receber sua pauta todo sexto dia da semana. Estilo esse que mais uma vez Gibreel compartilhara com ela, passando-lhe um terço de seu extraordinário talento. E então ele se afundou. Se drogava com muito mais freqüência viciando-se naquilo que em pouco tempo ela passou a odiar. Ele não mudara, seria aquele garoto perturbado e estranho para o resto da vida, não tinha ambições, não buscava mais o conforto desejado nela, e sim na heroína. Num espaço limitado e assombrosamente rápido tornaram – se dois estranhos. Ela entendia que o amor ainda existia mais não havia mais a vontade da divisão, do compartilhamento. Ele não desejava dividir com ela suas angustias, seus medos, sua aflição, não queria que ela o visse cair. Ela entendeu, e o deixou.

"E eu sei os motivos, sim, sei; e que é melhor assim, também sei. O amor é mais forte que nunca. O desejo cresce e se amplia, povoa minha mente, meus sonhos. Sonho, sim. Espero. A esperança é doce, alimenta, nutre..."- Lynn? – a voz sonolenta e masculina soou repentinamente preguiçosa assustando-a.Hun? – ela voltou-se lentamente encarando o dono da voz que a espiava com os olhos apertados metido debaixo de um edredom floral, deitado a poucos metros de sua escrivaninha. Querida, venha se deitar, termine sua matéria amanha, Randall lhe deu mais tempo, não?Ela sorriu constrangida, ele decididamente não fazia idéia de que ela, mais uma noite em um ano despejava sobre as teclas do seu computador incontáveis desejos e memórias quanto a Gibreel.Desligou-o e jogou-se cama, sendo imediatamente enlaçada pela cintura.
- Sim, ele nunca me deu tanto tempo...

by Mai.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

"Para nascer de novo, é preciso morrer primeiro."

"O meu nome é Gibreel. Podem rir, eu sei que é engraçado. Tem gente que me chama de Gengibre, nossa, eu já ouvi tantos nomes... Gibrael, até de girafa já me chamaram... Foi minha mãe que escolheu esse nome. Bom, ela era na época usuária de drogas, eu acho que isso explica muita coisa... No Islamismo dizem que as palavras do alcorão foram recitadas a Maomé pelo Arcanjo Gibreel, talvez por isso o nome, contudo, minha mãe nunca foi Islâmica, não, que eu saiba, sinceramente, acho que ela nunca foi nem em uma igreja, que dirá uma mesquita ou algo do tipo... Enfim, estou aqui e vos falo, meu nome é Gibreel, mas não sou nenhum Arcanjo. E houve uma época em que se eu tivesse asas teria vendido para comprar heroína."

"Sou usuário de drogas. E já uso há muito tempo. Às vezes creio que desde que nasci... não me lembro de uma época sem as drogas. Mas me lembro de como Lynn era feliz antes... Estranho, não? Lynn é a mulher que amo, minha alma, minha poesia, meu sol, minha lua. Eu a perdi..."

"Eu a perdi!"

"Não vamos falar do que está perdido, mas continuar, olhar pra frente. Afinal é pra isso que todos nós estamos aqui, não? Prosseguir, seguir adiante. E para isso que estou aqui dando o meu testemunho. Falando a vocês sobre a epopéia de minha queda. O meu preâmbulo. Desculpem a eloqüência. A abstinência me deixa assim. Eu posso falar por horas e, acabo de perceber que comecei da forma errada..."

"O meu nome é Gibreel Hewitt Mulheim. Sou escritor de livros não lidos, e hoje faz 342 dois dias, uma hora e cinqüenta minutos desde a ultima vez que injetei heroína no meu corpo."

Foi sim um belo testemunho. Muitos aplausos, abraços, vivas, solidariedade, compaixão...

Três dias depois disso o meu telefone tocou era o Randall.

"Olá, Gibreel" – ele começou.

"Olá." – respondi-lhe não muito animado.

"Estou ligando porque desde a ultima vez que nos falamos, eu fiquei te esperando vir buscar o seu último salário e até agora nem sinal de você. Ficou maluco de vez é? Agora até dinheiro esta dispensando?" – disse Randall.

"Eu passo ai amanhã."– falei ainda sonolento. Tinha tido uma noite difícil, mesmo estando há meses sem heroína, todas as noites tem sido uma tortura devido a abstinência.

"Espero que faça mesmo isso, Gibreel, não só pelo seu dinheiro, garoto, mas porque eu sempre gostei muito de você. Eu teria pedido a Lynn para levar, mas sabe como é, não? Ela marcou a data do casamento e acho que o noivo dela não gostaria muito..." – não deixei que ele terminasse e desliguei o telefone.

Ela marcou a data do casamento... É claro, um casal que ficou noivo tem toda a intenção de casar, certo! Mas, marcaram a data do casamento... É como se isso tornar-se a coisa real, mesmo ela tendo sempre sido... Uma funesta dose de realidade, uma overdose de verdades...

Quando você usa heroína pela primeira vez é como se tocasse Deus. É ser aceito no paraíso, entre anjos e serafins. É sentir uma comunhão com tudo o que é sagrado e divino. É atingir o ápice da compreensão, mesmo que tudo ainda lhe seja muito confuso... É tirar todo o peso dos seus ombros. É dar um grande foda-se a tudo o que te perturba. Foda-se o mundo, você sequer faz parte dele. Você é um alienígena e sua casa é bem longe atrás do sol. Esta além de questões de humanas...

Marcaram a data do casamento. E por que não ficar, além disso? Porque não dar um grande foda-se a isto?

E foi o que eu fiz em 17 de outubro de 2008, ás 20 horas de uma noite sem estrelas. Dei um grande foda-se a mim mesmo... Como eu fiz isso? Não esta obvio ainda?

E o ritual reiniciou depois de tanto tempo. É simples quando se tem o hábito; uma colher, a heroína em pó, um limão e um pedaço de algodão. Estes são os ingredientes básicos. Vamos adiante.

Modo de preparo.

Colocamos a heroína em pó na colher, um pouco de água, umas gotas de sumo de limão, uma fonte de calor, eu uso o isqueiro, o algodão para filtrar as impurezas. Introduzindo a droga na seringa, esta preparada à injeção...

...

All Those Yesterdays.

.

_ Ah, não! Cala a boca, telefone maldito!
- a dor de cabeça o fazia pensar no réveillon, no exato momento da virada quando soltam os fogos, mas, tente imaginar isso dentro da sua cabeça...

Gibreel, conhecido pela alcunha de Arcanjo, devido ao seu inusitado nome, levantou-se contrariado. Tinha ido dormir tarde, o que é um hábito, mas não sem antes beber quase uma garrafa de vodka, aqui temos mais um hábito, e agora despertara com uma terrível dor de cabeça ao som do celular tocando.

_ Que é? - falou Gibreel, atendendo o celular, ou talvez tenha rosnado, tamanha foi sua fúria.

_ Gibreel... - não houve nenhuma dúvida para Gibreel, e, mesmo tendo reconhecido a voz da pessoa do outro lado da linha, ele ficou mudo. Existem inúmeros, diversos momentos chocantes na vida, no entanto, para Gibreel, este foi um dos maiores até hoje... Reconhecera porque é impossível não lembrar de algo que nunca foi esquecido...

_ Gibreel? - ela falou novamente, sentindo-se tão nervosa quanto ele.

_ Eu tô aqui... - por fim, Gibreel respondeu, e o sono, até a dor de cabeça, pareceram abandona-lo, sendo substituídos por uma grande dose de perplexidade.

_ Você esta bem? - "Se estou bem? Se eu estou bem? Você sabia que a heroína não era minha? Você sabia que eu estava totalmente limpo? Sabia que se tivesse me dado uma chance, apenas uma estupida chance eu teria provado que a porra da heroína não era minha?" - foram todas as palavras que ele pensou em dizer, mas se conteve, por saber que aquilo não era justo com ela, por outro lado, é totalmente injusto consigo...

_ Eu estou bem, Lynn.

_ Liguei muito cedo? - perguntou Lynn, mas por guiza de desculpas, talvez por achar que tinha de dizer mais alguma coisa até ir ao ponto que a levara a ligar.

"... não, acredito que o correto é que é tarde, tarde demais..."

_ Não, Lynn, você deseja alguma coisa? Acredito que sim, pois já fez três anos...

_ Você acordou agora, não foi? Você pode vir aqui e tomar café conosco? - ela perguntou.

_ Você voltou dos Estados Unidos? - perguntou o surpreendido Gibreel.

_ Chegamos ontem. Eu preciso falar com você, Gibreel.



Uma hora depois Gibreel atravessava a rua, indo para a mesma Cafeteria que no passado frequentara diariamente com Lynn. Ainda sentindo um certo frio na garganta, não fazia idéia alguma do que Lynn poderia querer, e, lembrando o fato dela ter dito 'tomar café conosco' sem dúvida estava se referindo ao marido, ou seja, não é por uma tentativa de reconciliação... E se fosse...? Mas e se fosse?

Gibreel uniu suas mãos, entrelaçou os dedos, estalou-os todos juntos, em seguida enfiou as mãos nos bolsos e, após soltar um breve suspiro, entrou na Cafeteria.


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First Person.

Vi Lynn numa mesa próxima da janela. Ela não me viu, então me permiti um momento de pura nostalgia. Não me movi, mas, apenas, eu apenas fiquei olhando... E ela está linda, aliás, como sempre foi. E mesmo com aquela expressão grave de seriedade, ela ainda é a criatura mais linda que já vi em toda minha vida.

Subitamente ela se virou e me viu. - foi como se não houvesse mais ninguém ali dentro conosco, como se não houvesse mais ninguém no mundo. É, exatamente como esses estúpidos filmes românticos. Exatamente... E, quando o correto seria que eu fosse até lá, ela se levantou e veio caminhando em minha direção.

_ Oi, Gibrie. - Lynn cortou o silencio entre nós.

_ Oi, Lynn, tudo bem? - eu não sabia o que dizer.

_ Sim. Vem, senta aqui comigo. - convidou-me e eu aceitei. Ficamos de frente um para outro. Um garçom se aproximou, eu pedi café, e Lynn um suco de laranja.

_ Então... - dei a deixa para que ela dissesse o motivo de ter me chamado.

_ Antes, eu queria pedir de desculpas, Gibreel, é que mesmo você tendo voltado a usar heroína, eu não tinha o direito de ir embora daquela maneira, mas quero que saiba que não foi nada fácil... - eu a interrompi.

_ Eu estava limpo.

_ O quê? - perguntou Lynn.

_ A droga não era minha, Lynn. Eu não sabia na época como aquilo foi parar no nosso... no meu apartamento, mas depois descobri que foi Alessia, uma traficante de drogas, ela fez isso pra nos separar e conseguiu. - olhei em seus olhos. Eu não tinha a intenção de culpá-la, não queria fazer com que sofresse, eu apenas disse a verdade. E vi que aquilo a atingira, vi seus olhos brilharem daquela forma que antecede as lágrimas. Ela esticou a mão e agarrou a minha.

_ Você esta falando a verdade, Gibreel? - perguntou-me.

_ Jamais menti pra você.

Vi quando ela levou as mãos ao rosto, enxugando suas lágrimas. Quis abraça-la, beijar sua face, talvez dizer que não tem problema, que já se foi e que não importa. Mas na verdade importa, e também dói...

_ Eu... Meu Deus, Gibreel, eu não podia imaginar... Você não imagina o quanto eu sofri... - ela segurou minha mão novamente, apertando com força. _ Você pode me perdoar?

Eu sorri um sorriso torto.

_ Tá tudo bem... - desviei de seu olhar.

_ Não. Não está. Eu sinto muito...

_ Eu também.

Um perturbador silêncio pairou entre nós. E eu quis dizer inúmeras coisas. Dizer que compreendo, que qualquer pessoa no lugar dela teria feito o mesmo. Dizer que não doeu ter sido crucificado sendo inocente. Mentir...?

Ela ergueu a cabeça, esfregou os olhos novamente e me olhou com uma expressão diferente agora.

_ Porque ligou, Lynn? - fui direto ao assunto. Lynn suspirou, subitamente pareceu perder a confiança no que pretendia dizer. Ficou um momento em silêncio, olhou para algum ponto atrás de mim.

_ Matt está aqui, Gibreel, e tem outra pessoa com ele que você precisa conhecer... - e então ela acenou, eu deduzi que para Matt, mas de que outra pessoa ela está falando?

Ouvi passos e logo Matt estava de pé, diante de mim e Lynn, mas não estava sozinho... Matt tinha uma menina no colo, aparentemente com uns dois ou três anos. A semelhança dela com Lynn é incontestável, no entanto, ela em nada se parece com ele. Não consegui tirar os olhos da menina... e ela parecia não se importar com nada mais além do brinquedo de pelúcia em suas mãos; um anjo.

_ Olá, Gibreel, como vai? - perguntou Matt.

_ Bem, obrigado. - respondi. Não fiz como de praxe e perguntei o mesmo, por mim ele que vá pro inferno!

_ Mamãe. - a menina se jogou do colo de Matt, em cima de Lynn. _ Tio Matt me levou ao jardim, mas lá não tem rosas e eu queria uma pra dar pra você.

_ Você é a minha rosa, Eleni. - Lynn a beijou. Eu sorri, peguei a xícara de café e ia levando-a até a boca, mas, congelei... Tio Matt? Repondo a xícara em cima da mesa, olhei novamente para a Eleni. E agora eu percebi, santo Deus, eu percebi o porquê dela não parecer nenhum pouco com Matt... Porque não é filha dele, mas minha...

Senti meus olhos começarem a arder, logo minha visão embotou-se. Ergui uma mão e esfreguei os olhos, tornei a encarar a menina, Eleni, como Lynn a chamara. E não tive mais nenhuma dúvida...

_ Gibreel... - Lynn me chamou, e o tom da sua voz denunciou que ela já percebera o meu estado de choque e o motivo.

_ Essa é Eleni, Gibreel. Eleni, diga olá para o Gibreel. - Lynn disse. Eu fiquei mais mudo do que já estava, se é que isso é possível.

_ Olá, 'Giberel'. - minha filha.

Matt se levantou.

_ Vou deixá-los a sós. - dirigiu-se para... ah, sei lá pra onde ele foi e nem quero saber.

_ Olá, Eleni. - er... ah, eu queria dizer mais...

_ Querida, a mamãe vai chamar o tio Matt e já volta, você fica aqui e olha o Gibreel pra mim? - ah, mas como assim? Não! Eu... nada disse, outra vez.

_ Tá bom. - respondeu Eleni e ergueu o seu anjo em minha direção. Lynn deu um beijo na testa dela, olhou-me, talvez querendo dizer qualquer coisa que eu não entendi... Eleni ficou sentada em cima da mesa, de frente para mim.

Eu notei melhor sua aparência agora. Os seus cabelos são mais escuros que os de Lynn que são loiros, e não só isso, mas o formato dos seus lábios, e algumas linhas do seu rosto, é, ela se parece comigo. É, ela é minha filha. Então Lynn estava grávida quando se foi, mas ela sabia e não me comtou ou descobriu depois de partir?

_ Bonito o seu anjo. Ele tem um nome? - perguntei.

_ Haziel. - Eleni respondeu. Arqueei as duas sobrancelhas, e teria arqueado as três se tivesse mais uma.

_ Haziel, mas porque Haziel? - perguntei com extrema curiosidade.

_ Minha mãe disse que ele me protege, e também ao meu pai... - fiquei em silêncio, observando-a com o anjo. Depois de todo o choque, permiti-me sorrir, fitando aquela criança que é minha filha. Três anos. Eu perdi tanta coisa... Porque ela não me disse? Porque não me ligou? Eu teria ido ao inferno por essa criança, ou teria saido de lá...

Lynn voltou. Pegou Eleni no colo e a beijou novamente. Matt veio junto com ela. Eu fiquei de pé, todos estavam de pé. Lynn se aproximou com Eleni.

_ Filha, dá um beijo no Gibreel, já esta quase na hora de irmos embora. - ofereci minha face e Eleni me beijou no rosto. O primeiro beijo da minha filha... Toquei em seus cabelos, silenciosamente fiz uma prece por ela, e jurei fazer qualquer coisa por aquela menina.

_ Tchau, 'Giberel'.

_ Tchau, Eleni. - minha filha...

Lynn passou Eleni para o colo de Matt.

_ Vamos, princesinha, a mamãe vem logo. - Matt me olhou e se despediu com um gesto de cabeça. Assim que eles saíram, deixando-nos a sós novamente, eu a encarei.

_ Ela é a coisa mais linda que eu já vi. - falei, as lágrimas vieram aos meus olhos novamente.

_ Eu vejo você quando olho pra ela... - falou Lynn, com os olhos igualmente marejados de lagrimas.

_ Quando você soube? - usei a manga da camisa pra secar o rosto.

_ Eu voltava da clinica com o exame positivo, no dia em que encontrei a droga no apartamento... - ela emudeceu.

_ Você sabia antes de ter ido? Meu Deus, você casou com outro homem sabendo que era a minha filha dentro de você? Nunca passou pela sua cabeça que eu tinha direito de saber? Independente de drogas, que por sinal eu não usava, mas, claro, você não sabia, eu tinha o direito de saber... Eu tinha o direito. Eu nunca faria mal a ela... Você tinha que saber disso também. Como pode não acreditar em mim nem por um segundo? - explodi. Cerrei os dois punhos e bati com eles na mesa, chamando a atenção das pessoas dentro da Cafeteria.

_ Gibreel, por favor... - não permiti que ela continuasse.

_ Não. Você foi embora, Lynn, se tivesse esperado apenas um pouco, sabe, e mesmo se a heroína fosse minha, você poderia ao menos ter tido a decência de me esperar chegar e dizer “Seu filho da puta, eu to indo embora porque você voltou a usar essa merda”. Se tivesse feito isso eu teria provado que a droga não era minha. Eu esqueci isso, juro, é passado, eu tento, esforço-me pra compreender, e mesmo sem conseguir, lembro de todas as vezes que você esteve ao meu lado, lembro de toda a dor e sofrimento que eu causei a você...

Ela ficou em silêncio. Eu não penei em certo ou errado, apenas botei pra fora o que tava dentro de mim. E em outro impulso eu a puxei pelas mãos, colando nossos lábios, com ela contribuindo tanto quanto eu. Beijamo-nos como se esta fosse a última vez. E, provavelmente é...

Nos afastamos. Ela manteve os olhos fechados. Eu mordi meu lábio.

_ Eu te amo, mas jamais vou perdoar você por ter tirado de mim o dia do nascimento da minha filha, suas primeiras palavras, todos esses três anos... Nunca vou perdoar você por isso, mas amo você.

Dei as costas a Lynn e fui embora.

Haziel e Lynn.

Eu tinha doze anos quando a conheci, ela tinha onze, rosto e cabelos tão dourados quanto os de um querubim.
Eu tinha doze anos, duas malas nas mãos e muita pouca determinação...

Minha primeira e mal sucedida tentativa de fugir de casa aconteceu assim da seguinte forma...

Muitas vezes eu perguntei a minha mãe sobre o meu pai e em todas essas vezes as respostas foram variadas e vagas, mas todas inúteis, minha mãe demonstrou sempre que este era um assunto morto, assim eu desisti. No mais, ela vivia trancada dentro do seu quarto com o seu veneno... Nunca foi uma mãe má, mas também nunca fora uma boa mãe. Havia seus namorados, um a cada mês, às vezes semana. Mark foi o que ficou por mais tempo em nossa casa, ele era traficante de drogas, certamente minha mãe adorava todos os seus atributos...

Mark, um excelente sujeito, quando não espancava minha mãe, quando não jogava minha janta fora pelo simples prazer sádico de me ver com fome, eu realmente gostava muito dele, tirando as cinco vezes em que tentei matá-lo, essas cinco vezes em que fiquei trancado no porão por semanas, comendo a ração do cachorro e bebendo água da torneira.

Foi no porão que conheci Haziel. – a principio é claro, pensei tratar-se de um fantasma, um espírito. – ah, sim eu gritei, por minha mãe, até mesmo por Mark, naquele momento pareceu-me melhor o terror humano do que um fantasmagórico. Enquanto eu pedia, inutilmente, socorro a uma mãe entorpecida pelas drogas e a um padrasto que sorria assistindo futebol com uma lata de cerveja na mão, o homem no porão permanecia imóvel, olhando-me com uma expressão de tristeza na face. Eu suspirei, em seguida aspirei, enchendo meus pulmões de ar e meu coração de coragem. Hesitando muito, desci as escadas degrau por degrau, parei numa distância que considerei segura.

_ Quem... quem é você? – perguntei com relutância.

_ O meu nome é Haziel. – ele respondeu, sua voz parecia a de alguém profundamente triste. Haziel... Que tipo de nome é Haziel? Lembro-me de ter pensado... Lembro que ele vestia uma caça jeans surrada, uma camisa branca por baixo de um casaco negro também surrado. Ele mantinha sempre as mãos nos bolsos, olhava-me meio de lado.

_ Como entrou aqui? Porque esta aqui? Você... você é um fantasma? – perguntei abruptamente.

_ Não sou um fantasma, sou um amigo...


Deixando Haziel de lado e as muitas vezes que conversamos, quando ele me disse que era um Anjo Caído, e que por algum motivo que eu não podia saber agora, ele tinha de tomar conta de mim, voltemos a falar da minha mal sucedida tentativa de fuga...

Tudo pronto. Uma mala com três livros: Peter Pan, Oliver Twist de Charles Dickens e As Aventuras de Tom Sawyer de Mark Twain. Outra mala com uma muda de roupa. E isso significava o meu tudo naquela época.

Eu consegui ir até o fim da rua, isso foi o máximo até eu desistir, sentar sobre a sombra de uma árvore e chorar. Veja bem, eu não tinha pra onde ir, aquilo era loucura, fugir? Mas fugir pra onde? Chorei sim, eu chorei abraçando minhas pernas, deixando as malas de lado, cônscio de que eu nunca conseguiria abandonar o inferno.

_ Oi. – disse a menina, aproximou-se tão sorrateira que só fui percebê-la ao ouvir o som doce de sua voz. Eu não a olhei, então acho que isso a disse que devia prosseguir. _ Porque esta chorando?

_ Eu não estou chorando... – retruquei de pronto.

_ Mas são lágrimas nos seus olhos... – ela disse.

_ E daí? São lágrimas, mas eu não estou chorando. – respondi, levantei a cabeça e vi Lynn pela primeira vez. Como dizer isso...? Eu tinha doze anos, era só uma criança um tanto precoce, apaixonado por livros e tendo um Anjo Caído como amigo imaginário. Eu vi nela um céu sereno com nuvens de algodão doce...

_ Ok. O meu nome é Lynn e o seu?

_ Gibreel. – respondi, esperando alguma gracinha como gengibre ou algo do tipo.

_ Gibreel... Gibreel, eu gostei do seu nome. – ela respondeu.

_ Ta me zoando? – perguntei.

_ Não. O que você esta fazendo com essas malas, indo viajar? Você mora naquela casa amarela no começo da rua, não é? Eu te vi, estava passando de carro com meus pais... – eu nunca a tinha visto na minha vida, certamente me lembraria.

_ Eu morava na casa amarela, não moro mais, estou indo embora... – falei.

_ Seus pais vão se mudar? – achei que de quatro coisas que ela diz, quatro eram perguntas que, eu me sentia impossibilitado de não responder.

_ Estou fugindo de casa, portanto, vou só.

_ Hummm, entendi. Mas então nós não vamos mais nos ver? – perguntou-me com inocência.

_ Eu... eu acho que não, ora. – respondi sem jeito nenhum.

_ Não vai embora agora, ok, eu volto num minuto, não fuja agora. – ela saiu correndo como o vento, deixando-me ali sentado com uma cara de quem não entendera absolutamente nada.

Encostei o queixo nos joelhos e esperei.

Vinte minutos depois e ela estava de volta. Foi algo tão insano que tive de ficar de pé. Lynn voltara e tinha consigo duas malas. Fiquei um tempo revezando meu olhar entre as malas e o sorriso bobo em seus lábios.

_ Eu vou fugir com você, Gibreel, assim nos veremos sempre. – ela falou como se dissesse a coisa mais sensata e razoável do mundo.

_ Você é louca... – falei e me sentei novamente.

Não fugimos é claro, creio que ela nem o faria, acho que apenas tentava me demover da idéia. Foi assim que nos conhecemos. Depois disso não havia Gibreel sem Lynn, e Lynn sem Gibreel. Fazíamos tudo junto, éramos inseparáveis, éramos... éramos...

Isso não é um diário.

Isso me lembra Star Trek. No começo, quando o capitão James. T. Kirk dizia algo assim "Diário de bordo da nave estelar U.S.S. Enterprise. Estamos no quadrante beta, setor horizontal vertical estelar galático sei lá mais o quê..."

Isto não é um diário, não mesmo. Isso aqui é só eu fumando um cigarro, com o notebook a minha frente e sem inspiração pra continuar as crônicas do
Haziel. Isto sou eu escrevendo pra mim mesmo, com que intenção, eu ainda não sei. Talvez eu queira atualizar a minha vida, rever os fatos mais recentes, eu não sei, não sei...

Pra começar, eu não estou bem...

Eu fiquei sabendo que foi uma bela cerimônia, mas disseram que a noiva não parecia tão feliz, ao menos não como deveria para uma ocasião dessas. Dá vontade de rir, pra não chorar, entende? Eu ainda sinto o cheiro dos cabelos dela, o calor do seu corpo, as vezes quando me deito e fecho os olhos eu espero sentir a cabeça dela tocar o meu peito... A última vez que vi
Lynn foi numa noite triste de chuva, eu tinha ido apenas pedir desculpas pelo modo rude que a tratei no hospital depois da overdose que tive. Fizemos amor naquela noite, com cheiro de pecado, com exigência, com fome e saudade...

Ela se casou e se eu escrever mais uma palavra sobre Lynn, juro que pulo da janela...

Dorothy ainda mora no apartamento ao lado do meu. Dorothy de olhos tristes. Minha Dory com quem a vida foi tão cruel. As vezes eu a imagino dançando entre as nuvens, vejo-a feliz, eu queria que ela fosse um personagem de um dos meus livros, assim eu lhe daria um final tão maravilhoso, o mais sublime que minha imaginação conseguisse alcançar... Daqui a pouco eu vou largar o notebook, bater na porta dela com a desculpa de ir tomar apenas um café, mas a verdade é que não consigo mais dormir sem ter certeza de que ela esta bem. Quem cuida de quem aqui, Dorothy? Eu de você, ou você de mim?

Não creio que fui suficientemente grato a
Will. Uma menina apenas, tão amaldiçoada quanto eu, mas que numa noite ousadamente deixou um amigo entrar em sua casa, um amigo que mentiu para ela dizendo que estava ferido por ter sido assaltado, quando na verdade levara uma surra de traficantes a quem ele devia. Tenho a intenção de procurá-la. Dane-se se eu sou um maldito viciado em heroína, um mau exemplo, mas não posso permitir que Will tenha o mesmo destino.

Nunca direi a Mel, mas três dias depois dela ter me contado o motivo de seu desaparecimento quando eramos crianças, eu não consegui me controlar, juro que tentei, lutei desesperadamente contra a idéia de fazer aquilo... Voltei até lá, até o bairro onde eu, Lynn e Mel crescemos juntos. Encontrei o pai de Mel no jardim.

_ Ah, sim, mas é claro. O pequeno Gibreel. Ah, tornou-se um belo rapaz. Creio que esteja procurando pela minha filha, mas infelizmente nunca mais tivemos notícias dela. - o monstro respondeu. Eu não disse mais nada, dei-lhe um soco no queixo que o fez cair sentado no chão.

_ Não se preocupe, eu já tive notícias dela e também dos seus atos monstruosos e desumanos, seu maldito filho da puta! - chutei-o no rosto. Em seguida dei-lhe uma sucessão de chutes intermináveis até meu pé ficar dormente. Ele desmaiou e eu fui embora.

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The Archangel.

"Para nascer de novo" cantava Gibreel Farishta despencando do céu, "... é preciso morrer primeiro".

Por que você está aqui?Você está ouvindo?Você pode ouvir o que eu estou dizendo?Eu não estou aqui, eu não estou ouvindo.Eu estou na minha cabeça e estou girando...


As luzes acedem.As luzes apagam.Quando as coisas não estão certas.Eu deitarei como um cão esgotado.Lambendo suas feridas sobre a sombra.

Quando eu me sentir vivo tentarei imaginar uma vida sem cuidados, um mundo cênico onde todos tem um por do sol deslumbrante...


тнє αяcнαηgєł.


Acendi outro cigarro. Continuei com os olhos fixos ao monitor do notebook. Coloquei o cigarro no cinzeiro, em seguida juntei minhas mãos e estalei quase todos os dedos. - Ao trabalho! – enviei estes mesmos dez dedos ao teclado, eles correram rápidos, ansiosos, desesperados, mas nada aconteceu.


Levantei-me e fui até o rádio. – música. Talvez isso ajude. – o cd do Poets of the fall encaixou na bandeja, eu escolhi a faixa e logo o som de Sleep podia ser ouvido em cada canto do apartamento.

Vários cigarros depois, uma garrafa de vodka, um baseado, e ainda assim nenhuma palavra. Olhei-me no espelho... Fitei minha própria face durante um tempo; não pensei em absolutamente nada, mas tive vontade de me xingar pelo que já sabia estar prestes a fazer... – que saber de uma coisa, foda-se.


Abri a maldita gaveta e tirei seu maldito conteúdo. Fiz tudo rápido, com aquela rapidez de quem já se habituou e para quem aquilo é algo tão comum quanto respirar. O pó, a colher, o fogo, em seguida o líquido na seringa, o silicone, a veia e a viagem... O ritual.

As palavras vieram... Dezenas delas... Logo, viraram centenas, milhares, espalhadas pelo quarto, embaixo do sofá velho e corroído, em cima da mesa! Eu só tive de catá-las, pegá-las por sílabas, juntá-las e enquadrá-las. Escrevi num ritmo frenético, esqueci-me do tempo e criei anjos, demônios, fadas, cavalheiros...


O telefone celular. O maldito celular tocando em algum lugar. Afastei o notebook, olhei para um lado, para outro, levantei-me e segui o som da trilha sonora de guerras nas estrelas – to indo, to indo. – trôpego, quase caio, a sala parece girar, eu só vejo palavras na minha frente... Encontro o celular tocando no banheiro, dentro do bolso da calça que usei ontem. Uma rápida olhada no identificador de chamadas...


_ Ah, merda, merda, merda!


Atendi aquela porra de uma vez.


_ Alõ.


_ O que aconteceu, Gibrie? Achei que tínhamos combinado que você me entregaria hoje a tarde todos os contos... Santo Deus! Você ganha um bom dinheiro e só têm que escrever alguns contos simples, estórias simples do cotidiano, não é pedir demais tendo em vista que é pago por isso. Vou lhe dar um conselho...


_ Um conselho, Randall? Você me da vários conselhos por dia, falando assim fica parecendo algo inédito. – retruquei.


_ Gibreel... – ai vem o conselho. _ Seu problema é falta de visão e imaginação demais... Veja bem... – ele fez uma pausa, talvez estivesse procurando a folha onde guarda aquele discurso já tão repetido. _ Você é um exímio escritor, mas escreve coisas que ninguém que ler. Não adianta, garoto, o que vende mesmo são coisas com impacto, histórias reais, ou ficção para adolescentes. Não adianta querer escrever sobre anjos, demônios e vampiros do jeito sério e dedicado que você faz. Os leitores querem o drama simples, a novela e não nada que force muito as suas cabeças. Ai está o conselho, Gibrie, faça o que quiser com ele, desculpe-me, mas vou ter que demitir você.


Fiquei em silêncio por um segundo.


_ Ok. – respondi e desliguei o celular, jogando-o na privada.

Que saber de uma coisa? Quero mesmo é que tudo se foda!

Voltando a sala, completamente fora de controle, algo muito comum em mim quando estou em situações de tensão, ou as que eu julgo serem tensas, agarrei o notebook e com força o joguei contra a parede. Em seguida sentei no chão mesmo. Estiquei o braço e peguei a seringa novamente...


O mesmo ritual, a mesma maldição...