sexta-feira, 24 de abril de 2009

"Para nascer de novo, é preciso morrer primeiro."

"O meu nome é Gibreel. Podem rir, eu sei que é engraçado. Tem gente que me chama de Gengibre, nossa, eu já ouvi tantos nomes... Gibrael, até de girafa já me chamaram... Foi minha mãe que escolheu esse nome. Bom, ela era na época usuária de drogas, eu acho que isso explica muita coisa... No Islamismo dizem que as palavras do alcorão foram recitadas a Maomé pelo Arcanjo Gibreel, talvez por isso o nome, contudo, minha mãe nunca foi Islâmica, não, que eu saiba, sinceramente, acho que ela nunca foi nem em uma igreja, que dirá uma mesquita ou algo do tipo... Enfim, estou aqui e vos falo, meu nome é Gibreel, mas não sou nenhum Arcanjo. E houve uma época em que se eu tivesse asas teria vendido para comprar heroína."

"Sou usuário de drogas. E já uso há muito tempo. Às vezes creio que desde que nasci... não me lembro de uma época sem as drogas. Mas me lembro de como Lynn era feliz antes... Estranho, não? Lynn é a mulher que amo, minha alma, minha poesia, meu sol, minha lua. Eu a perdi..."

"Eu a perdi!"

"Não vamos falar do que está perdido, mas continuar, olhar pra frente. Afinal é pra isso que todos nós estamos aqui, não? Prosseguir, seguir adiante. E para isso que estou aqui dando o meu testemunho. Falando a vocês sobre a epopéia de minha queda. O meu preâmbulo. Desculpem a eloqüência. A abstinência me deixa assim. Eu posso falar por horas e, acabo de perceber que comecei da forma errada..."

"O meu nome é Gibreel Hewitt Mulheim. Sou escritor de livros não lidos, e hoje faz 342 dois dias, uma hora e cinqüenta minutos desde a ultima vez que injetei heroína no meu corpo."

Foi sim um belo testemunho. Muitos aplausos, abraços, vivas, solidariedade, compaixão...

Três dias depois disso o meu telefone tocou era o Randall.

"Olá, Gibreel" – ele começou.

"Olá." – respondi-lhe não muito animado.

"Estou ligando porque desde a ultima vez que nos falamos, eu fiquei te esperando vir buscar o seu último salário e até agora nem sinal de você. Ficou maluco de vez é? Agora até dinheiro esta dispensando?" – disse Randall.

"Eu passo ai amanhã."– falei ainda sonolento. Tinha tido uma noite difícil, mesmo estando há meses sem heroína, todas as noites tem sido uma tortura devido a abstinência.

"Espero que faça mesmo isso, Gibreel, não só pelo seu dinheiro, garoto, mas porque eu sempre gostei muito de você. Eu teria pedido a Lynn para levar, mas sabe como é, não? Ela marcou a data do casamento e acho que o noivo dela não gostaria muito..." – não deixei que ele terminasse e desliguei o telefone.

Ela marcou a data do casamento... É claro, um casal que ficou noivo tem toda a intenção de casar, certo! Mas, marcaram a data do casamento... É como se isso tornar-se a coisa real, mesmo ela tendo sempre sido... Uma funesta dose de realidade, uma overdose de verdades...

Quando você usa heroína pela primeira vez é como se tocasse Deus. É ser aceito no paraíso, entre anjos e serafins. É sentir uma comunhão com tudo o que é sagrado e divino. É atingir o ápice da compreensão, mesmo que tudo ainda lhe seja muito confuso... É tirar todo o peso dos seus ombros. É dar um grande foda-se a tudo o que te perturba. Foda-se o mundo, você sequer faz parte dele. Você é um alienígena e sua casa é bem longe atrás do sol. Esta além de questões de humanas...

Marcaram a data do casamento. E por que não ficar, além disso? Porque não dar um grande foda-se a isto?

E foi o que eu fiz em 17 de outubro de 2008, ás 20 horas de uma noite sem estrelas. Dei um grande foda-se a mim mesmo... Como eu fiz isso? Não esta obvio ainda?

E o ritual reiniciou depois de tanto tempo. É simples quando se tem o hábito; uma colher, a heroína em pó, um limão e um pedaço de algodão. Estes são os ingredientes básicos. Vamos adiante.

Modo de preparo.

Colocamos a heroína em pó na colher, um pouco de água, umas gotas de sumo de limão, uma fonte de calor, eu uso o isqueiro, o algodão para filtrar as impurezas. Introduzindo a droga na seringa, esta preparada à injeção...

...

All Those Yesterdays.

.

_ Ah, não! Cala a boca, telefone maldito!
- a dor de cabeça o fazia pensar no réveillon, no exato momento da virada quando soltam os fogos, mas, tente imaginar isso dentro da sua cabeça...

Gibreel, conhecido pela alcunha de Arcanjo, devido ao seu inusitado nome, levantou-se contrariado. Tinha ido dormir tarde, o que é um hábito, mas não sem antes beber quase uma garrafa de vodka, aqui temos mais um hábito, e agora despertara com uma terrível dor de cabeça ao som do celular tocando.

_ Que é? - falou Gibreel, atendendo o celular, ou talvez tenha rosnado, tamanha foi sua fúria.

_ Gibreel... - não houve nenhuma dúvida para Gibreel, e, mesmo tendo reconhecido a voz da pessoa do outro lado da linha, ele ficou mudo. Existem inúmeros, diversos momentos chocantes na vida, no entanto, para Gibreel, este foi um dos maiores até hoje... Reconhecera porque é impossível não lembrar de algo que nunca foi esquecido...

_ Gibreel? - ela falou novamente, sentindo-se tão nervosa quanto ele.

_ Eu tô aqui... - por fim, Gibreel respondeu, e o sono, até a dor de cabeça, pareceram abandona-lo, sendo substituídos por uma grande dose de perplexidade.

_ Você esta bem? - "Se estou bem? Se eu estou bem? Você sabia que a heroína não era minha? Você sabia que eu estava totalmente limpo? Sabia que se tivesse me dado uma chance, apenas uma estupida chance eu teria provado que a porra da heroína não era minha?" - foram todas as palavras que ele pensou em dizer, mas se conteve, por saber que aquilo não era justo com ela, por outro lado, é totalmente injusto consigo...

_ Eu estou bem, Lynn.

_ Liguei muito cedo? - perguntou Lynn, mas por guiza de desculpas, talvez por achar que tinha de dizer mais alguma coisa até ir ao ponto que a levara a ligar.

"... não, acredito que o correto é que é tarde, tarde demais..."

_ Não, Lynn, você deseja alguma coisa? Acredito que sim, pois já fez três anos...

_ Você acordou agora, não foi? Você pode vir aqui e tomar café conosco? - ela perguntou.

_ Você voltou dos Estados Unidos? - perguntou o surpreendido Gibreel.

_ Chegamos ontem. Eu preciso falar com você, Gibreel.



Uma hora depois Gibreel atravessava a rua, indo para a mesma Cafeteria que no passado frequentara diariamente com Lynn. Ainda sentindo um certo frio na garganta, não fazia idéia alguma do que Lynn poderia querer, e, lembrando o fato dela ter dito 'tomar café conosco' sem dúvida estava se referindo ao marido, ou seja, não é por uma tentativa de reconciliação... E se fosse...? Mas e se fosse?

Gibreel uniu suas mãos, entrelaçou os dedos, estalou-os todos juntos, em seguida enfiou as mãos nos bolsos e, após soltar um breve suspiro, entrou na Cafeteria.


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First Person.

Vi Lynn numa mesa próxima da janela. Ela não me viu, então me permiti um momento de pura nostalgia. Não me movi, mas, apenas, eu apenas fiquei olhando... E ela está linda, aliás, como sempre foi. E mesmo com aquela expressão grave de seriedade, ela ainda é a criatura mais linda que já vi em toda minha vida.

Subitamente ela se virou e me viu. - foi como se não houvesse mais ninguém ali dentro conosco, como se não houvesse mais ninguém no mundo. É, exatamente como esses estúpidos filmes românticos. Exatamente... E, quando o correto seria que eu fosse até lá, ela se levantou e veio caminhando em minha direção.

_ Oi, Gibrie. - Lynn cortou o silencio entre nós.

_ Oi, Lynn, tudo bem? - eu não sabia o que dizer.

_ Sim. Vem, senta aqui comigo. - convidou-me e eu aceitei. Ficamos de frente um para outro. Um garçom se aproximou, eu pedi café, e Lynn um suco de laranja.

_ Então... - dei a deixa para que ela dissesse o motivo de ter me chamado.

_ Antes, eu queria pedir de desculpas, Gibreel, é que mesmo você tendo voltado a usar heroína, eu não tinha o direito de ir embora daquela maneira, mas quero que saiba que não foi nada fácil... - eu a interrompi.

_ Eu estava limpo.

_ O quê? - perguntou Lynn.

_ A droga não era minha, Lynn. Eu não sabia na época como aquilo foi parar no nosso... no meu apartamento, mas depois descobri que foi Alessia, uma traficante de drogas, ela fez isso pra nos separar e conseguiu. - olhei em seus olhos. Eu não tinha a intenção de culpá-la, não queria fazer com que sofresse, eu apenas disse a verdade. E vi que aquilo a atingira, vi seus olhos brilharem daquela forma que antecede as lágrimas. Ela esticou a mão e agarrou a minha.

_ Você esta falando a verdade, Gibreel? - perguntou-me.

_ Jamais menti pra você.

Vi quando ela levou as mãos ao rosto, enxugando suas lágrimas. Quis abraça-la, beijar sua face, talvez dizer que não tem problema, que já se foi e que não importa. Mas na verdade importa, e também dói...

_ Eu... Meu Deus, Gibreel, eu não podia imaginar... Você não imagina o quanto eu sofri... - ela segurou minha mão novamente, apertando com força. _ Você pode me perdoar?

Eu sorri um sorriso torto.

_ Tá tudo bem... - desviei de seu olhar.

_ Não. Não está. Eu sinto muito...

_ Eu também.

Um perturbador silêncio pairou entre nós. E eu quis dizer inúmeras coisas. Dizer que compreendo, que qualquer pessoa no lugar dela teria feito o mesmo. Dizer que não doeu ter sido crucificado sendo inocente. Mentir...?

Ela ergueu a cabeça, esfregou os olhos novamente e me olhou com uma expressão diferente agora.

_ Porque ligou, Lynn? - fui direto ao assunto. Lynn suspirou, subitamente pareceu perder a confiança no que pretendia dizer. Ficou um momento em silêncio, olhou para algum ponto atrás de mim.

_ Matt está aqui, Gibreel, e tem outra pessoa com ele que você precisa conhecer... - e então ela acenou, eu deduzi que para Matt, mas de que outra pessoa ela está falando?

Ouvi passos e logo Matt estava de pé, diante de mim e Lynn, mas não estava sozinho... Matt tinha uma menina no colo, aparentemente com uns dois ou três anos. A semelhança dela com Lynn é incontestável, no entanto, ela em nada se parece com ele. Não consegui tirar os olhos da menina... e ela parecia não se importar com nada mais além do brinquedo de pelúcia em suas mãos; um anjo.

_ Olá, Gibreel, como vai? - perguntou Matt.

_ Bem, obrigado. - respondi. Não fiz como de praxe e perguntei o mesmo, por mim ele que vá pro inferno!

_ Mamãe. - a menina se jogou do colo de Matt, em cima de Lynn. _ Tio Matt me levou ao jardim, mas lá não tem rosas e eu queria uma pra dar pra você.

_ Você é a minha rosa, Eleni. - Lynn a beijou. Eu sorri, peguei a xícara de café e ia levando-a até a boca, mas, congelei... Tio Matt? Repondo a xícara em cima da mesa, olhei novamente para a Eleni. E agora eu percebi, santo Deus, eu percebi o porquê dela não parecer nenhum pouco com Matt... Porque não é filha dele, mas minha...

Senti meus olhos começarem a arder, logo minha visão embotou-se. Ergui uma mão e esfreguei os olhos, tornei a encarar a menina, Eleni, como Lynn a chamara. E não tive mais nenhuma dúvida...

_ Gibreel... - Lynn me chamou, e o tom da sua voz denunciou que ela já percebera o meu estado de choque e o motivo.

_ Essa é Eleni, Gibreel. Eleni, diga olá para o Gibreel. - Lynn disse. Eu fiquei mais mudo do que já estava, se é que isso é possível.

_ Olá, 'Giberel'. - minha filha.

Matt se levantou.

_ Vou deixá-los a sós. - dirigiu-se para... ah, sei lá pra onde ele foi e nem quero saber.

_ Olá, Eleni. - er... ah, eu queria dizer mais...

_ Querida, a mamãe vai chamar o tio Matt e já volta, você fica aqui e olha o Gibreel pra mim? - ah, mas como assim? Não! Eu... nada disse, outra vez.

_ Tá bom. - respondeu Eleni e ergueu o seu anjo em minha direção. Lynn deu um beijo na testa dela, olhou-me, talvez querendo dizer qualquer coisa que eu não entendi... Eleni ficou sentada em cima da mesa, de frente para mim.

Eu notei melhor sua aparência agora. Os seus cabelos são mais escuros que os de Lynn que são loiros, e não só isso, mas o formato dos seus lábios, e algumas linhas do seu rosto, é, ela se parece comigo. É, ela é minha filha. Então Lynn estava grávida quando se foi, mas ela sabia e não me comtou ou descobriu depois de partir?

_ Bonito o seu anjo. Ele tem um nome? - perguntei.

_ Haziel. - Eleni respondeu. Arqueei as duas sobrancelhas, e teria arqueado as três se tivesse mais uma.

_ Haziel, mas porque Haziel? - perguntei com extrema curiosidade.

_ Minha mãe disse que ele me protege, e também ao meu pai... - fiquei em silêncio, observando-a com o anjo. Depois de todo o choque, permiti-me sorrir, fitando aquela criança que é minha filha. Três anos. Eu perdi tanta coisa... Porque ela não me disse? Porque não me ligou? Eu teria ido ao inferno por essa criança, ou teria saido de lá...

Lynn voltou. Pegou Eleni no colo e a beijou novamente. Matt veio junto com ela. Eu fiquei de pé, todos estavam de pé. Lynn se aproximou com Eleni.

_ Filha, dá um beijo no Gibreel, já esta quase na hora de irmos embora. - ofereci minha face e Eleni me beijou no rosto. O primeiro beijo da minha filha... Toquei em seus cabelos, silenciosamente fiz uma prece por ela, e jurei fazer qualquer coisa por aquela menina.

_ Tchau, 'Giberel'.

_ Tchau, Eleni. - minha filha...

Lynn passou Eleni para o colo de Matt.

_ Vamos, princesinha, a mamãe vem logo. - Matt me olhou e se despediu com um gesto de cabeça. Assim que eles saíram, deixando-nos a sós novamente, eu a encarei.

_ Ela é a coisa mais linda que eu já vi. - falei, as lágrimas vieram aos meus olhos novamente.

_ Eu vejo você quando olho pra ela... - falou Lynn, com os olhos igualmente marejados de lagrimas.

_ Quando você soube? - usei a manga da camisa pra secar o rosto.

_ Eu voltava da clinica com o exame positivo, no dia em que encontrei a droga no apartamento... - ela emudeceu.

_ Você sabia antes de ter ido? Meu Deus, você casou com outro homem sabendo que era a minha filha dentro de você? Nunca passou pela sua cabeça que eu tinha direito de saber? Independente de drogas, que por sinal eu não usava, mas, claro, você não sabia, eu tinha o direito de saber... Eu tinha o direito. Eu nunca faria mal a ela... Você tinha que saber disso também. Como pode não acreditar em mim nem por um segundo? - explodi. Cerrei os dois punhos e bati com eles na mesa, chamando a atenção das pessoas dentro da Cafeteria.

_ Gibreel, por favor... - não permiti que ela continuasse.

_ Não. Você foi embora, Lynn, se tivesse esperado apenas um pouco, sabe, e mesmo se a heroína fosse minha, você poderia ao menos ter tido a decência de me esperar chegar e dizer “Seu filho da puta, eu to indo embora porque você voltou a usar essa merda”. Se tivesse feito isso eu teria provado que a droga não era minha. Eu esqueci isso, juro, é passado, eu tento, esforço-me pra compreender, e mesmo sem conseguir, lembro de todas as vezes que você esteve ao meu lado, lembro de toda a dor e sofrimento que eu causei a você...

Ela ficou em silêncio. Eu não penei em certo ou errado, apenas botei pra fora o que tava dentro de mim. E em outro impulso eu a puxei pelas mãos, colando nossos lábios, com ela contribuindo tanto quanto eu. Beijamo-nos como se esta fosse a última vez. E, provavelmente é...

Nos afastamos. Ela manteve os olhos fechados. Eu mordi meu lábio.

_ Eu te amo, mas jamais vou perdoar você por ter tirado de mim o dia do nascimento da minha filha, suas primeiras palavras, todos esses três anos... Nunca vou perdoar você por isso, mas amo você.

Dei as costas a Lynn e fui embora.

Haziel e Lynn.

Eu tinha doze anos quando a conheci, ela tinha onze, rosto e cabelos tão dourados quanto os de um querubim.
Eu tinha doze anos, duas malas nas mãos e muita pouca determinação...

Minha primeira e mal sucedida tentativa de fugir de casa aconteceu assim da seguinte forma...

Muitas vezes eu perguntei a minha mãe sobre o meu pai e em todas essas vezes as respostas foram variadas e vagas, mas todas inúteis, minha mãe demonstrou sempre que este era um assunto morto, assim eu desisti. No mais, ela vivia trancada dentro do seu quarto com o seu veneno... Nunca foi uma mãe má, mas também nunca fora uma boa mãe. Havia seus namorados, um a cada mês, às vezes semana. Mark foi o que ficou por mais tempo em nossa casa, ele era traficante de drogas, certamente minha mãe adorava todos os seus atributos...

Mark, um excelente sujeito, quando não espancava minha mãe, quando não jogava minha janta fora pelo simples prazer sádico de me ver com fome, eu realmente gostava muito dele, tirando as cinco vezes em que tentei matá-lo, essas cinco vezes em que fiquei trancado no porão por semanas, comendo a ração do cachorro e bebendo água da torneira.

Foi no porão que conheci Haziel. – a principio é claro, pensei tratar-se de um fantasma, um espírito. – ah, sim eu gritei, por minha mãe, até mesmo por Mark, naquele momento pareceu-me melhor o terror humano do que um fantasmagórico. Enquanto eu pedia, inutilmente, socorro a uma mãe entorpecida pelas drogas e a um padrasto que sorria assistindo futebol com uma lata de cerveja na mão, o homem no porão permanecia imóvel, olhando-me com uma expressão de tristeza na face. Eu suspirei, em seguida aspirei, enchendo meus pulmões de ar e meu coração de coragem. Hesitando muito, desci as escadas degrau por degrau, parei numa distância que considerei segura.

_ Quem... quem é você? – perguntei com relutância.

_ O meu nome é Haziel. – ele respondeu, sua voz parecia a de alguém profundamente triste. Haziel... Que tipo de nome é Haziel? Lembro-me de ter pensado... Lembro que ele vestia uma caça jeans surrada, uma camisa branca por baixo de um casaco negro também surrado. Ele mantinha sempre as mãos nos bolsos, olhava-me meio de lado.

_ Como entrou aqui? Porque esta aqui? Você... você é um fantasma? – perguntei abruptamente.

_ Não sou um fantasma, sou um amigo...


Deixando Haziel de lado e as muitas vezes que conversamos, quando ele me disse que era um Anjo Caído, e que por algum motivo que eu não podia saber agora, ele tinha de tomar conta de mim, voltemos a falar da minha mal sucedida tentativa de fuga...

Tudo pronto. Uma mala com três livros: Peter Pan, Oliver Twist de Charles Dickens e As Aventuras de Tom Sawyer de Mark Twain. Outra mala com uma muda de roupa. E isso significava o meu tudo naquela época.

Eu consegui ir até o fim da rua, isso foi o máximo até eu desistir, sentar sobre a sombra de uma árvore e chorar. Veja bem, eu não tinha pra onde ir, aquilo era loucura, fugir? Mas fugir pra onde? Chorei sim, eu chorei abraçando minhas pernas, deixando as malas de lado, cônscio de que eu nunca conseguiria abandonar o inferno.

_ Oi. – disse a menina, aproximou-se tão sorrateira que só fui percebê-la ao ouvir o som doce de sua voz. Eu não a olhei, então acho que isso a disse que devia prosseguir. _ Porque esta chorando?

_ Eu não estou chorando... – retruquei de pronto.

_ Mas são lágrimas nos seus olhos... – ela disse.

_ E daí? São lágrimas, mas eu não estou chorando. – respondi, levantei a cabeça e vi Lynn pela primeira vez. Como dizer isso...? Eu tinha doze anos, era só uma criança um tanto precoce, apaixonado por livros e tendo um Anjo Caído como amigo imaginário. Eu vi nela um céu sereno com nuvens de algodão doce...

_ Ok. O meu nome é Lynn e o seu?

_ Gibreel. – respondi, esperando alguma gracinha como gengibre ou algo do tipo.

_ Gibreel... Gibreel, eu gostei do seu nome. – ela respondeu.

_ Ta me zoando? – perguntei.

_ Não. O que você esta fazendo com essas malas, indo viajar? Você mora naquela casa amarela no começo da rua, não é? Eu te vi, estava passando de carro com meus pais... – eu nunca a tinha visto na minha vida, certamente me lembraria.

_ Eu morava na casa amarela, não moro mais, estou indo embora... – falei.

_ Seus pais vão se mudar? – achei que de quatro coisas que ela diz, quatro eram perguntas que, eu me sentia impossibilitado de não responder.

_ Estou fugindo de casa, portanto, vou só.

_ Hummm, entendi. Mas então nós não vamos mais nos ver? – perguntou-me com inocência.

_ Eu... eu acho que não, ora. – respondi sem jeito nenhum.

_ Não vai embora agora, ok, eu volto num minuto, não fuja agora. – ela saiu correndo como o vento, deixando-me ali sentado com uma cara de quem não entendera absolutamente nada.

Encostei o queixo nos joelhos e esperei.

Vinte minutos depois e ela estava de volta. Foi algo tão insano que tive de ficar de pé. Lynn voltara e tinha consigo duas malas. Fiquei um tempo revezando meu olhar entre as malas e o sorriso bobo em seus lábios.

_ Eu vou fugir com você, Gibreel, assim nos veremos sempre. – ela falou como se dissesse a coisa mais sensata e razoável do mundo.

_ Você é louca... – falei e me sentei novamente.

Não fugimos é claro, creio que ela nem o faria, acho que apenas tentava me demover da idéia. Foi assim que nos conhecemos. Depois disso não havia Gibreel sem Lynn, e Lynn sem Gibreel. Fazíamos tudo junto, éramos inseparáveis, éramos... éramos...

Isso não é um diário.

Isso me lembra Star Trek. No começo, quando o capitão James. T. Kirk dizia algo assim "Diário de bordo da nave estelar U.S.S. Enterprise. Estamos no quadrante beta, setor horizontal vertical estelar galático sei lá mais o quê..."

Isto não é um diário, não mesmo. Isso aqui é só eu fumando um cigarro, com o notebook a minha frente e sem inspiração pra continuar as crônicas do
Haziel. Isto sou eu escrevendo pra mim mesmo, com que intenção, eu ainda não sei. Talvez eu queira atualizar a minha vida, rever os fatos mais recentes, eu não sei, não sei...

Pra começar, eu não estou bem...

Eu fiquei sabendo que foi uma bela cerimônia, mas disseram que a noiva não parecia tão feliz, ao menos não como deveria para uma ocasião dessas. Dá vontade de rir, pra não chorar, entende? Eu ainda sinto o cheiro dos cabelos dela, o calor do seu corpo, as vezes quando me deito e fecho os olhos eu espero sentir a cabeça dela tocar o meu peito... A última vez que vi
Lynn foi numa noite triste de chuva, eu tinha ido apenas pedir desculpas pelo modo rude que a tratei no hospital depois da overdose que tive. Fizemos amor naquela noite, com cheiro de pecado, com exigência, com fome e saudade...

Ela se casou e se eu escrever mais uma palavra sobre Lynn, juro que pulo da janela...

Dorothy ainda mora no apartamento ao lado do meu. Dorothy de olhos tristes. Minha Dory com quem a vida foi tão cruel. As vezes eu a imagino dançando entre as nuvens, vejo-a feliz, eu queria que ela fosse um personagem de um dos meus livros, assim eu lhe daria um final tão maravilhoso, o mais sublime que minha imaginação conseguisse alcançar... Daqui a pouco eu vou largar o notebook, bater na porta dela com a desculpa de ir tomar apenas um café, mas a verdade é que não consigo mais dormir sem ter certeza de que ela esta bem. Quem cuida de quem aqui, Dorothy? Eu de você, ou você de mim?

Não creio que fui suficientemente grato a
Will. Uma menina apenas, tão amaldiçoada quanto eu, mas que numa noite ousadamente deixou um amigo entrar em sua casa, um amigo que mentiu para ela dizendo que estava ferido por ter sido assaltado, quando na verdade levara uma surra de traficantes a quem ele devia. Tenho a intenção de procurá-la. Dane-se se eu sou um maldito viciado em heroína, um mau exemplo, mas não posso permitir que Will tenha o mesmo destino.

Nunca direi a Mel, mas três dias depois dela ter me contado o motivo de seu desaparecimento quando eramos crianças, eu não consegui me controlar, juro que tentei, lutei desesperadamente contra a idéia de fazer aquilo... Voltei até lá, até o bairro onde eu, Lynn e Mel crescemos juntos. Encontrei o pai de Mel no jardim.

_ Ah, sim, mas é claro. O pequeno Gibreel. Ah, tornou-se um belo rapaz. Creio que esteja procurando pela minha filha, mas infelizmente nunca mais tivemos notícias dela. - o monstro respondeu. Eu não disse mais nada, dei-lhe um soco no queixo que o fez cair sentado no chão.

_ Não se preocupe, eu já tive notícias dela e também dos seus atos monstruosos e desumanos, seu maldito filho da puta! - chutei-o no rosto. Em seguida dei-lhe uma sucessão de chutes intermináveis até meu pé ficar dormente. Ele desmaiou e eu fui embora.

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The Archangel.

"Para nascer de novo" cantava Gibreel Farishta despencando do céu, "... é preciso morrer primeiro".

Por que você está aqui?Você está ouvindo?Você pode ouvir o que eu estou dizendo?Eu não estou aqui, eu não estou ouvindo.Eu estou na minha cabeça e estou girando...


As luzes acedem.As luzes apagam.Quando as coisas não estão certas.Eu deitarei como um cão esgotado.Lambendo suas feridas sobre a sombra.

Quando eu me sentir vivo tentarei imaginar uma vida sem cuidados, um mundo cênico onde todos tem um por do sol deslumbrante...


тнє αяcнαηgєł.


Acendi outro cigarro. Continuei com os olhos fixos ao monitor do notebook. Coloquei o cigarro no cinzeiro, em seguida juntei minhas mãos e estalei quase todos os dedos. - Ao trabalho! – enviei estes mesmos dez dedos ao teclado, eles correram rápidos, ansiosos, desesperados, mas nada aconteceu.


Levantei-me e fui até o rádio. – música. Talvez isso ajude. – o cd do Poets of the fall encaixou na bandeja, eu escolhi a faixa e logo o som de Sleep podia ser ouvido em cada canto do apartamento.

Vários cigarros depois, uma garrafa de vodka, um baseado, e ainda assim nenhuma palavra. Olhei-me no espelho... Fitei minha própria face durante um tempo; não pensei em absolutamente nada, mas tive vontade de me xingar pelo que já sabia estar prestes a fazer... – que saber de uma coisa, foda-se.


Abri a maldita gaveta e tirei seu maldito conteúdo. Fiz tudo rápido, com aquela rapidez de quem já se habituou e para quem aquilo é algo tão comum quanto respirar. O pó, a colher, o fogo, em seguida o líquido na seringa, o silicone, a veia e a viagem... O ritual.

As palavras vieram... Dezenas delas... Logo, viraram centenas, milhares, espalhadas pelo quarto, embaixo do sofá velho e corroído, em cima da mesa! Eu só tive de catá-las, pegá-las por sílabas, juntá-las e enquadrá-las. Escrevi num ritmo frenético, esqueci-me do tempo e criei anjos, demônios, fadas, cavalheiros...


O telefone celular. O maldito celular tocando em algum lugar. Afastei o notebook, olhei para um lado, para outro, levantei-me e segui o som da trilha sonora de guerras nas estrelas – to indo, to indo. – trôpego, quase caio, a sala parece girar, eu só vejo palavras na minha frente... Encontro o celular tocando no banheiro, dentro do bolso da calça que usei ontem. Uma rápida olhada no identificador de chamadas...


_ Ah, merda, merda, merda!


Atendi aquela porra de uma vez.


_ Alõ.


_ O que aconteceu, Gibrie? Achei que tínhamos combinado que você me entregaria hoje a tarde todos os contos... Santo Deus! Você ganha um bom dinheiro e só têm que escrever alguns contos simples, estórias simples do cotidiano, não é pedir demais tendo em vista que é pago por isso. Vou lhe dar um conselho...


_ Um conselho, Randall? Você me da vários conselhos por dia, falando assim fica parecendo algo inédito. – retruquei.


_ Gibreel... – ai vem o conselho. _ Seu problema é falta de visão e imaginação demais... Veja bem... – ele fez uma pausa, talvez estivesse procurando a folha onde guarda aquele discurso já tão repetido. _ Você é um exímio escritor, mas escreve coisas que ninguém que ler. Não adianta, garoto, o que vende mesmo são coisas com impacto, histórias reais, ou ficção para adolescentes. Não adianta querer escrever sobre anjos, demônios e vampiros do jeito sério e dedicado que você faz. Os leitores querem o drama simples, a novela e não nada que force muito as suas cabeças. Ai está o conselho, Gibrie, faça o que quiser com ele, desculpe-me, mas vou ter que demitir você.


Fiquei em silêncio por um segundo.


_ Ok. – respondi e desliguei o celular, jogando-o na privada.

Que saber de uma coisa? Quero mesmo é que tudo se foda!

Voltando a sala, completamente fora de controle, algo muito comum em mim quando estou em situações de tensão, ou as que eu julgo serem tensas, agarrei o notebook e com força o joguei contra a parede. Em seguida sentei no chão mesmo. Estiquei o braço e peguei a seringa novamente...


O mesmo ritual, a mesma maldição...